quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Vocação, Missão e Identidade Laical




Queridas alunas e alunos, a messe é grande! É no 'coração do mundo' que os leigos precisam testemunhar sua adesão à proposta de Jesus...

(É uma plantação do cereal 'canola' situada entre Carazinho e Palmeira das Missões RS)

Prof. José Wilson Schlickmann, Mestre em Educação, professor com passagem pelo Colégio Anchieta, Col. Dom Diogo de Sousa, Escola Santa Teresinha, 31 de Janeiro,  Unisinos e Feevale, ex-presidente do CNLB da Diocese de Novo Hamburgo e do CNLB Regional Sul III, delegado do CNLB Nacional na Assembléia de Constituição do CONIC, atual professor da Faccat, Coordenador de Cursos de Extensão em Ciências Religiosas e Semanas Teológicas promovidas pela Faccat, Coordenador da Comissão do Canto Litúrgico Pastoral da Diocese de Novo Hamburgo, membro da Equipe de Canto Litúrgico Pastoral da CNBB Sul 3 e integrante da Equipe de Liturgia na Paróquia Santa Teresinha de Campo Bom RS.
                                           
Vocação, Missão e Identidade Laical
                                          
Este trabalho tem a intenção de fomentar, estimular e provocar um processo de estudo, reflexão e análise com vistas a uma melhor e mais clara compreensão da vocação, da identidade e da missão do cristão leigos e leigas na Igreja Povo de Deus. Este texto deseja ajudar na caminhada de construção da identidade laica de homens e mulheres comprometidos com as causas do Reino de Deus, anunciado, vivido e testemunhado por Jesus de Nazaré. Quer falar dos ensinamentos e saberes hoje corporificados na história e vida da Igreja Povo de Deus que se manifesta, está presente e age em cada um dos discípulos missionários e em cada uma das comunidades discípulas missionárias que se reúnem fundamentadas e motivadas pela fé no Deus revelado em Jesus Cristo.

São apresentados pontos de orientação para o estudo, a reflexão e a busca de mais saberes e compreensões a respeito da vocação, da missão e da identidade laical e da forma de crer e de viver a serem concretizadas. Isso para que, como cristãos leigos e leigas singulares, como movimentos e/ou organizações de leigos e leigas, melhor possam contribuir com a implementação e a inculturação dos valores do Reino de Deus no coração dos diferentes mundos específicos nos quais vivem e convivem os leigos e leigas. Fala-se da vocação, da missão e da identidade específicas de leigos e leigas e dos seus múltiplos organismos e movimentos nos quais se encontram inseridos e com os quais se sentem comprometidos na construção da Igreja Povo de Deus.

Para acontecer efetivamente esse processo de estudos e de busca da identidade laical considera-se necessário ter consciência de que é importante alargar o horizonte compreensivo a respeito da vocação, da missão e da identidade específica dos cristãos leigos e leigas. Isso porque, para ser e/ou vir a ser o leigo e a leiga que a Igreja de Jesus precisa, sente-se a necessidade de muita oração, formação, capacitação, clareza e unidade de propósitos, fraternidade na caminhada, apoio mútuo, troca de experiências, muita determinação, organização, articulação e, sobretudo, considera-se importante entender a necessidade de juntos aprenderem a crer como Jesus acreditou nas causas do Reino do Deus cristão.

Este subsídio quer, pois, se constituir num instrumento provocador de estudos, debates e de construção de novas compreensões sobre a Igreja de Jesus, sobre o específico dos cristãos leigos e leigas e sobre a necessidade de organização, de articulação e de representatividade laical junto à hierarquia dessa mesma Igreja. Justifica-se essa determinação, tendo em vista construir melhores condições para que, como cristãos leigos e leigas, todos possam cumprir, com mais alegria, fundamentos, consciência e consistência, a sua vocação e missão específicas na construção do Reinado de Deus nesse mundo concreto, do aqui e do agora, das realidades nas quais cada cristão leigo e cada cristã leiga vive, convive, ora e trabalha.

São apresentados estudos, compreensões e saberes que ilustram a condição de cristãos leigos e leigas, a vocação e a missão específicas, as necessidades de organização, de articulação e de representatividade e a necessária unidade, relação e comunhão com os demais organismos da Igreja Povo de Deus, com o objetivo de que cada um possa melhor entender quem é e qual o lugar que ocupa e/ou que precisa ocupar.

Este roteiro de estudos é resultado de um conjunto de subsídios produzidos pelo CNLB em sua caminhada de articulação e de organização do laicato no Brasil, construído durante os muitos anos da sua caminhada de articulação. Constitui-se de saberes, reflexões e compreensões fundadas em documentos do Concílio Vaticano II e/ou nele originados e inspirados. Com essa finalidade descrita, o texto a seguir está dividido em tópicos com o objetivo didático de melhor apresentar este trabalho e, ao mesmo tempo, de ajudar a melhorar o entendimento dos que o lerem e o estudarem.

1.  Ser Igreja a partir da realidade.

Esse primeiro tópico, Ser Igreja a partir da realidade, fala da caminhada da Igreja a partir do Vaticano II e chama a atenção para a necessidade de que cristãos leigos e leigas sejam a Igreja Povo de Deus dentro da sua realidade concreta e específica, ou seja, no Coração do Mundo.

Diz a Lumen Gentium que “aos leigos compete, por vocação própria, buscar o Reino de Deus, ocupando-se das coisas temporais e ordenado-as segundo Deus. Vivem no mundo, no meio de todas e de cada uma das atividades e profissões, nas circunstâncias ordinárias da vida familiar e social. Aí os chama Deus a contribuírem, do interior à maneira de fermento, para a santificação do mundo e a manifestarem Cristo aos outros através do testemunho de vida e do fulgor de sua fé, esperança e caridade” (LG 31).

Segundo essa compreensão, é no mundo das atividades profissionais, no lar, nos ambientes de convivência, no lazer, nas esferas da economia, da política, da política partidária, dos meios de comunicação, das instituições educacionais, da saúde, da moradia, da justiça, da terra, e ainda, segundo essa mesma compreensão, é nas mais variadas e diferentes estruturas organizativas da sociedade que os cristãos leigos e leigas, com o seu testemunho e presença transformadora, são insubstituíveis como cristãos e cristãs da Igreja Povo de Deus.

Em outras palavras, o lugar próprio, específico, privilegiado e prioritário para o testemunho cristão dos leigos e leigas é o vasto, complexo e dinâmico mundo da política, do social, do econômico, da cultura, das ciências, das artes, da técnica, da comunicação; é também o complexo mundo das organizações e articulações nacionais e internacionais, bem como ainda, constitui-se lugar próprio, da ação evangelizadora do laicato, o vasto e complexo campo das questões relacionadas com a família, com os jovens, os idosos, a mulher e as minorias, o campo das diversas formas e estilos de trabalho, os sofrimentos e as exclusões de grupos significativos da população, submetidos a condições indignas de existência e de vida, segundo os critérios do Reino de Deus.

Também, de acordo com a Lumen Gentium, ”os leigos são chamados de modo especial a tornar presente e operante a Igreja naqueles lugares e circunstâncias onde Ela só por meio deles pode vir a ser sal e fermento. Assim o leigo é, ao mesmo tempo, testemunha e instrumento vivo da própria missão da Igreja nos seus lugares específicos” (LG 31).


2.  Princípios de ação necessários
De acordo com as aprendizagens construídas na caminhada de vida, de fé e de estudos do laicato no Brasil, são necessários alguns princípios norteadores para fundamentar e alicerçar essa responsabilidade dos leigos em seu desafio missionário frente às causas do Reino de Deus. Entre outros, é preciso:

Adotar, como princípio de vida e das suas ações, atitudes e comportamentos de persuasão e jamais de imposição. É necessário convencer os outros e os espaços de convivência que cada um ocupa na sociedade, pelo exemplo, pela coerência entre o discurso cristão e a prática cristã, convencer pela constância e persistência na vida cristã e pela alegria em viver a proposta na qual se confessa acreditar.

Entender a Igreja e a proposta de Jesus, como um parâmetro de avaliação entre o jeito de Jesus ser protagonista do Reino e o jeito de cada cristão leigo e leiga ser protagonista desse mesmo Reino, buscando continuamente uma melhor adequação do seu estilo de vida ao estilo de vida de Jesus.

Entender que o mais importante não é crer em Jesus, e sim, crer como Jesus acreditou e esteve comprometido com a proposta do Reino, amar como Jesus amou, até a morte. Esse pressuposto compreensivo dá conta de que não é suficiente acreditar em Jesus e isso porque os diabos presentes na sociedade de hoje também acreditam em Jesus.

Buscar compreensão e entendimento de que a identidade do cristão leigo e leiga é também marcada, como a dos demais cristãos, pelo batismo na Igreja de Jesus Cristo, pela tradição apostólica e pelo comprometimento com as mesmas causas pelas quais Jesus deu a sua própria vida.

Estar convencido de que a identificação com a Igreja de Jesus transparece na prática, naquilo que o cristão leigo e leiga é no seu dia-a-dia, enquanto seguidor e imitador de Jesus e na qualidade cristã da sua relação com o vasto mundo das instituições e organizações da sociedade e com os demais fiéis dessa mesma Igreja de Jesus. É nessas relações que se manifesta ou não a verdadeira identidade cristã dos seguidores de Jesus.

Aprender a reconhecer, a acolher, a valorizar e a promover os diferentes dons, as diferentes formas e riquezas de ser Igreja, colocando-se junto com os demais cristãos na construção do Reinado de Deus. Ter consciência de que esse Reino é bem maior que a pequenês, a mesquinhês e a miserabilidade de espírito de muitos e muitas que se dizem pertencer a essa Igreja, sejam eles leigos e leigas ou não.

Articular-se e organizar-se com as demais expressões e manifestações da Igreja de Jesus, o Cristo, para que, com mais força e com mais condições e pertinência, ser instrumentos mais eficazes a serviço da construção do Reinado de Deus com o qual Jesus estava vital e radicalmente comprometido.

Ter consciência de que a organização e a articulação dos cristãos leigos e leigas não é um movimento a mais que vem para substituir os carismas dos demais, para impor uma nova espiritualidade ou um novo valor inspirador e motivador para a vida cristã desta ou daquela pastoral ou movimento, desta ou daquela instituição ou entidade.

Assumir a compreensão de que, tanto os Núcleos Paroquiais do Laicato, como o Conselho Diocesano do Laicato, o Conselho Regional do Laicato ou o Conselho Nacional do Laicato, são organismos de articulação, mobilização, motivação, animação, apoio e representação dos cristãos leigos e leigas. Isso para que o laicato, em seu todo, seja mais forte e mais capaz de se fazer ouvir nas diversas instâncias representativas do poder público constituído e também fazer-se forte e ouvido frente às diversas e diferentes instâncias e organismos da hierarquia eclesiástica. Isso para que juntos sejam mais fortes e convincentes em suas posições diante dos vários e intermináveis desafios que a sociedade, marcada pelos valores do neoliberalismo capitalista lhes impõe, causando transtornos aos desejos e propósitos da implementação do Reinado de Deus.

Por fim, compreender e assumir, radicalmente, como pressuposto, que todo batizado, leigo e leiga, não exerce um papel supletivo ou uma função secundária no campo da missão e da evangelização, mas que possui um papel e lugar próprio, específico, intransferível, só dele, e, portanto, de sua única, exclusiva, inalienável e indeclinável responsabilidade. Significa compreender e assumir o fato de que nenhum cristão leigo e leiga exerce uma suplência; significa dizer, de forma mais radical, que não pode existir ninguém, fora das quatro linhas do campo da missão e da evangelização, esperando por uma eventual substituição para entrar no jogo; não podem existir suplentes, pois na Igreja de Jesus ninguém é suplente de ninguém. Todos os cristãos leigos e leigas são titulares e precisam, necessariamente, assumir essa sua condição de titularidade na construção do Reinado do Deus de Jesus, o Cristo.


3.  Necessária consciência eclesial.
Convém, entretanto, nessa sua condição de titularidade, também ter a consciência de que, apesar dessa insistência na insubstituibilidade do leigo e da leiga nos diferentes campos específicos da sua missão evangelizadora, ele e ela não estão sós ou solitários nessa Igreja. A compreensão e/ou a imagem de Igreja, desenvolvida no Vaticano II, apresenta como necessidade resgatar, fazer crescer, amadurecer e valorizar a condição da dignidade do cristão leigo e leiga e a sua respectiva corresponsabilidade eclesial.

Decorrente dessa mesma imagem de Igreja, a partir das compreensões construídas no Vaticano II, o cristão leigo e leiga tem como Vocação e Missão participar ativamente de toda a vida da Igreja; impregnar o mundo da proposta e do espírito cristãos; santificar e ordenar tudo segundo o plano e a vontade de Deus; tornar-se sal e fermento cristão onde vive, se diverte, ora e trabalha; ser testemunha cristã no meio da comunidade humana (cf. LG 33 e GS 42).

Ainda, decorrente dessa mesma imagem de Igreja construída e encontrada no Concílio Vaticano II, precisam, os leigos e leigas, ter consciência, compreender e assumir que:

Os cristãos leigos e leigas não exercem um ministério supletivo, pois não são cristãos de segunda categoria e por isso não podem mais agir como Igreja só quando convocados pelo clero e bispos e/ou suas respectivas organizações; que o mandato eclesial torna-se dispensável para que o leigo e a leiga trabalhe na edificação do Reinado de Deus, do qual toda a Igreja é apenas um instrumento, compreendendo a Igreja não como um fim em si mesma, mas apenas meio de salvação;

Podem e devem colaborar com os sacerdotes, bispos, diáconos e com suas respectivas organizações, mas não podem substituir padres, bispos e diáconos ou suas organizações em suas respectivas especificidades de missão e de responsabilidade;

Devem, leigos e leigas, viver sua vocação e missão no coração do mundo, assumindo esse mesmo mundo como o seu lugar próprio e específico de missão e de evangelização, isto é, são chamados a se colocarem a serviço das causas do Reino de Deus e a inculturar, no aqui e agora do mundo no qual vivem, trabalham, convivem e oram, a mensagem e a prática de Jesus de Nazaré, o Cristo, razão da sua fé;

O protagonismo dos leigos e leigas se dá numa Igreja Povo de Deus e numa condição de relações entre iguais em responsabilidade com os demais integrantes dessa Igreja de Jesus, o Cristo;

A religião não é mais a do Rei, não é mais a da família, a da tradição, porque agora a religião é a da opção, da adesão individual de pertença a esta ou àquela comunidade de fé religiosa;

O Vaticano II libertou o Espírito Santo e os cristãos e cristãs precisam libertá-lo ainda mais, pois não há mais o proprietário do sagrado, o proprietário de todas as verdades, de todo o poder, isso porque a Igreja, em seu todo e totalidade é depositária do Espírito Santo, que agora sopra onde quer, em quem quer e quando quer e é importante reconhecer e dar-se conta que o Espírito Santo sopra também sobre e nos cristãos leigos e leigas;

Precisa organizar-se, tanto quanto necessário, para ser mais e melhor uma Igreja Povo de Deus a caminho do Reino, onde quer que esteja, viva, ore e trabalhe;

Um ministério e/ou um serviço eclesial somente tem razão de existência quando o mesmo estiver a serviço de uma comunidade específica de fé.


4.  O necessário dever dos bispos, clero e respectivas organizações.
Da mesma forma que os cristãos leigos e leigas têm uma missão própria e insubstituível no contexto da Igreja de Jesus, também os bispos, clero e suas respectivas organizações têm um dever próprio e específico. É pensamento do Concílio Vaticano II que todos os da hierarquia eclesial precisam:

Ter consciência de que a razão de existência de bispos, padres e suas diferentes estruturas organizativas e cargos eclesiásticos, só têm motivo e razão de existência porque existem fiéis leigos e leigas, comunidades cristãs e pessoas por serem evangelizadas, isto é, reconhecer que alguém só pode exercer o pastoreio quando existirem ovelhas por serem pastoreadas;

Reconhecer, resgatar e acolher a dignidade de todos os seres humanos e estimular, valorizar e promover a responsabilidade dos cristãos leigos e leigas em sua vocação e missão específicas;

Utilizar-se dos saberes e conselhos dos protagonistas do Reino de Deus que vivem, têm experiência de Igreja e são a Igreja no coração do mundo;

Entregar e/ou confiar, aos leigos e leigas, ofícios no serviço da Igreja instituição e também responsabilidades organizativas e administrativas;

Reconhecer, estimular e promover a liberdade e a amplitude da ação pastoral dos leigos e leigas, com ênfase para aquela ação de testemunhas cristãs no coração do mundo;

Encorajar, apoiar e criar condições para o surgimento, o fortalecimento e a continuidade de empreendimentos laicos em outras e novas formas de serviço à causa do Reino e Povo de Deus;

Reconhecer a justa liberdade de trabalho, de articulação e de organização que compete aos cristãos, leigos e leigas, no coração do mundo, para serem mais fortes, capazes, competentes e persistentes em suas ações de missão e de evangelização.


5.  A necessária Autonomia e Comunhão
Esse tópico aponta para o fato de que todos e todas que têm a consciência de pertença a uma comunidade de fé cristã e integram a Igreja de Jesus precisam reconhecer que:

A autonomia não é sinal de individualismo ou de assumir-se superior aos demais e sim sinal de garantia de identidade. Isso porque a comunhão entre dois indivíduos ou mais, entre instituições ou organismos, só é possível quando ambos se constituírem sujeitos autônomos. Somente a autonomia dos sujeitos que interagem na Igreja de Jesus pode garantir as condições para a comunhão, para a liberdade e para a construção da identidade própria de cada um dos sujeitos presentes nessas relações;

O sentido da existência do ser humano, enquanto indivíduo, se situa no seu ser-para-o-outro, no seu ser-com-o-outro; que é somente na condição de autonomia que ele pode decidir ser-com-o-outro, que é somente na condição de autonomia que ele pode buscar e propor comunhão e que é, também, somente a partir da condição de comunhão que são constituídas e construídas as possibilidades de realização do homem e da mulher, dos cristãos e cristãs, seres sócios dos e com os demais membros da comunidade de fé;

O ser cristão de todos os membros da Igreja de Jesus só é constituído e só se constrói na liberdade de adesão a uma comunidade de fé cristã, de adesão à comunhão com os demais integrantes da grande Igreja de Jesus Cristo, sejam os outros leigos ou leigas, diáconos, sacerdotes, bispos ou religiosos;

A Igreja Povo de Deus é essencialmente a comunidade dos fiéis, discípulos e seguidores do Mestre Jesus de Nazaré, e que é intrínseco a essa comunidade, e dos que a compõem, principalmente os leigos e leigas, serem testemunhas, sinais e protagonistas dessa Igreja comunidade no coração dos seus respectivos mundos específicos;

“Os leigos, que devem participar ativamente em toda a vida da Igreja, estão obrigados não somente a impregnar o mundo de espírito cristão, mas também são chamados a serem testemunhas de Cristo em tudo, no meio da comunidade humana” (GS 43).


6. Modelo de comunhão eclesial.
Na vida relacional das pessoas em sociedade comunga-se de ideais, objetivos, metas, deuses, sonhos. São, também, comungadas a paixão de uma torcida por seu time, a paixão ou a admiração comum pela arte, pela música, literatura, tradição. O modelo de comunhão que a Igreja de Jesus propõe e deseja viver é o modelo relacional de comunhão existente na Trindade do Deus que é Pai, que é Filho e que é Espírito Santo. Portanto:

A comunhão existente entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo precisa ser o modelo de comunhão eclesial a ser buscado. Essa comunhão trinitária é modelo para a comunhão desejada para a Igreja porque, para acontecer qualquer comunhão, é necessária a doação total de um ao outro, a exemplo da relação existente entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo que se doam inteiramente um ao outro;

Todos os cristãos e cristãs, a exemplo da comunhão trinitária, precisam e/ou devem doar-se uns aos outros, colocando-se em atitude de quem serve os outros; essa proposta reflete uma expressão utilizada pelos papas quando os mesmos se auto-intitulam de ‘servo dos servos de Deus’ ou ainda, no mesmo contexto, quando a expressão bíblica diz que ‘quem quer ser o maior que se coloque a serviço dos outros”; doar-se ou servir os outros, portanto, não combina com o servir-se dos outros para subir na vida, para galgar posições mais altas, vantajosas e privilegiadas;

Acontece a construção da comunhão, na Igreja Povo de Deus, quando cada cristão e cada cristã trabalhar e colocar-se a serviço da implementação do Reinado de Deus em sua respectiva realidade;

A comunhão se vive, se constitui e se aprofunda também no estímulo, no respeito e no reconhecimento do serviço e trabalho que o outro faz pela construção do Reino de Deus;

A comunhão Trinitária é o modelo de qualquer comunhão eclesial, também a que deve estar presente na Igreja Cristã Católica. Isso porque não acontece Igreja com um indivíduo sozinho. Seria o mesmo que alguém dizer que é possível a existência de um grupo constituído por uma só pessoa. Grupo e Igreja sempre exigem a presença de outros, a presença de mais pessoas. O Deus Trinitário existe em comunidade e a Igreja de Jesus é, necessária e intrinsecamente, uma comunidade constituída pelo grupo dos que crêem, é sempre e necessariamente uma comunidade de pessoas;

A nova sociedade, protagonizada no Reinado de Deus, é modelada e quer ser moldada na comunhão, e uma comunhão que é mais do que democracia, isso porque a comunhão da qual se fala nesse contexto é essencialmente comunhão fraterna;

São características, dessa Igreja comunhão, o acolhimento, o diálogo, a participação, a colaboração, a corresponsabilidade, as causas e interesses comuns, a comunicação, a solidariedade, o perdão, a correção fraterna, a promoção da dignidade do outro, o reconhecimento do valor do outro, o apoio ao crescimento e à realização do outro;

Três são as dimensões dessa comunhão eclesial: a comunhão com Deus, numa relação vertical e filial; a comunhão com os outros, numa relação horizontal e fraterna e a comunhão com o mundo, numa relação de respeito e valorização dos bens naturais e/ou das coisas terrenas em benefício da promoção de todos os homens e mulheres;

Acontece, pois, comunhão quando os cristãos e cristãs comungam, em Jesus, o Cristo, um Deus Trindade, a vida de cada um e de cada uma, quando comungam seus desafios, problemas e vitórias, quando comungam uma Igreja Povo de Deus a cominho do Reinado de Deus, quando comungam uma Igreja comunidade de fiéis e de discípulos de Jesus e, ainda, quando comungam a mesma crença e qualidade de comprometimento com as causas do Reino de Deus como Jesus acreditou e esteve comprometido;

Não é suficiente, pois, acreditar em Jesus, até porque os diabos desse mundo, no qual se vive, também acreditam em Jesus e têm suas crenças comuns; isso significa dizer e reafirmar que é necessário acreditar como Jesus acreditou nas causas do Reino de Deus, por Jesus revelado e anunciado, para acontecer a desejada comunhão eclesial.


7. Necessária relação entre hierarquia e laicato.
Outra temática sobre a qual é necessário falar é a que trata da qualidade das relações entre os leigos e a hierarquia eclesial. Com certeza não se trata de um jogo, a qualquer preço, do poder pelo poder e para ver quem manda e quem não manda, quem é maior, quem é menor, quem vale mais e quem vale menos. A igualdade entre todos os cristãos está fundamentada no fato de que todos são filhos e filhas de Deus, batizados num mesmo batismo, e por isso irmãos e irmãs no irmão maior, Jesus Cristo. Essa compreensão implica em reconhecer que:

Também o papa, os bispos e sacerdotes integram e estão a serviço da comunidade de fiéis e da caminhada de Igreja Povo de Deus, comprometidos com as mesmas causas do Reino, em vista da concretização do Reinado de Deus, comprometimento esse igual ao exigido e esperado dos demais membros dessa Igreja;

A nenhum cristão, seja ele leigo ou membro da hierarquia, cabe o poder pelo poder, o mando pelo mando, o servir-se dos outros, o gozar de privilégios; a todos cabe a atitude de colocarem-se na dinâmica de quem está a serviço, de quem assume a atitude de servo dos servos do Senhor; e isso significa, pois, entender e assumir que cabe a todos serem testemunhas da comunhão a serviço de mais comunhão e que nessa lógica, maior é aquele que mais se coloca a serviço dos outros, ou seja, aquele que quiser ser o maior que seja o primeiro a colocar-se em atitude de quem serve;

Cabe resgatar e promover, nos leigos e leigas, a consciência de pertença à Igreja Povo de Deus, sem a sua necessária clericalização ou intraeclesialização;

Cabe à hierarquia pensar, ser e agir, fundamentada na igualdade intrínseca de todos os cristãos e na sua igualdade de responsabilidades, advindas do mesmo batismo comum a todos, reconhecendo, resgatando, respeitando, acolhendo e promovendo a diversidade de dons, de tarefas, ministérios e serviços para o bem maior da Igreja Povo de Deus;

Cabe, a todos os cristãos, ver, ser e sentir-se Igreja em sua totalidade, pois só assim se saberá valorizar e dar importância a cada parcela desse todo que é a Igreja de Jesus;

Cabe ver, na comunidade de fé cristã, uma Igreja de batizados que, em seu todo, é maior que os elementos que a compõem: bispos, padres, leigos e religiosos;

Cabe ressaltar a importância da unidade, da comunhão, do serviço e da riqueza de expressões da Igreja de Jesus Cristo, uma Igreja toda missionária e evangelizadora a serviço da concretização do Reinado de Deus num mundo no qual todos os cristãos e todas as cristãs vivem, convivem, oram, divertem-se e trabalham;

Cabe compreender que a legítima e necessária distinção entre bispos, padres, religiosos e leigos não significa separação, não significa cisão, ruptura ou serem contrários, e sim, reconhecimento e acolhimento das respectivas identidades singulares, nas suas mais ricas expressões, assumindo, de uma vez por todas, que diferente não é sinônimo de contrário;

Cabe compreender que, como em tudo ou em qualquer grupo, organização e instituição, há a necessidade de uma coordenação e de alguém que, nas devidas instâncias e momentos, seja responsável pela última palavra;

Cabe compreender que a questão não está em ter ou não ter uma última palavra e sim como se chega a essa última palavra, se originada apenas na cabeça de algum membro do grupo ou se originada no consenso, no diálogo, na construção coletiva;

Cabe, finalmente, também compreender que, tanto no sacerdócio ministerial quanto no sacerdócio comum dos demais batizados, um não pode existir sem que o outro exista e que ambos, cada um a seu modo participa do tríplice múnus salvífico de Cristo Rei, Sacerdote e Profeta.


8.  Características da identidade laica.
Perguntas e questões que precisam ser devidamente respondidas são as que tratam de quais são realmente as características específicas dos cristãos leigos e leigas nesse contexto de Igreja Povo de Deus. Sobre essa temática da identidade dos leigos e leigas é pertinente dizer que:

“Os leigos são o conjunto dos fiéis, não ordenados e/ou não consagrados que, pelo batismo, são constituídos em Povo de Deus e que realizam na Igreja e no mundo, na parte que lhes compete, a missão de todo o povo cristão” (LG 31); são homens e mulheres, não ordenados e não consagrados, que vivem e focam a sua atenção e atuação, concentrados no serviço às causas do Reino de Deus, no coração do mundo;

Os cristãos leigos e leigas são aqueles que criam, constituem e moldam sua identidade, configurando suas vidas de acordo com a proposta de Jesus na perspectiva da construção do Reinado de Deus em comunhão com os demais membros da Igreja, mas agindo com o foco de sua ação centrado no coração do mundo; que atuam em seus respectivos mundos, comprometidos com o resgate e a promoção da dignidade humana, sob a ótica da espiritualidade e da ética do Reino, vividas exemplarmente por Jesus;

São homens e mulheres comprometidos, prioritariamente, com as causas dos pobres e dos excluídos, à moda de Jesus, no coração do mundo; seguidores das práticas de Jesus de Nazaré, o Cristo, razão da fé que professam, que são e agem de forma cristã nos diferentes ambientes nos quais vivem, trabalham e se divertem; que se assumem iguais em dignidade e responsabilidade com os demais membros da Igreja, Povo de Deus;

São homens e mulheres, intimamente sintonizados e comprometidos, no coração do mundo, com toda a Igreja Povo de Deus, a caminho da construção do Reinado de Deus, que, no seu jeito de viver e ser, constituem-se protagonistas da ação catequética e evangelizadora em seus respectivos mundos específicos;

São homens e mulheres, enfim, que colaboram, junto com os padres, bispos, diáconos, religiosos e integrantes dos institutos seculares, com a construção do Reinado de Deus, através da Igreja instrumento a serviço do Povo de Deus, cuja união “decorre da união dos espíritos e dos corações, isto é, daquela fé e caridade pelas quais sua unidade foi construída indissoluvelmente no Espírito Santo” (GS 42).


9.  Protagonismo dos cristãos leigos e leigas, uma questão intrínseca.
Algo intrínseco é uma característica sem a qual algo ou alguém não é o que se diz ser ou se anuncia ser. Intrínseco ao cristão, leigo e leiga, é compreender, anunciar e viver no dia-a-dia a sua opção de ser cristão feita no batismo. Assim como é intrínseco à roseira produzir rosas, à laranjeira produzir laranjas, ao pé de abacaxi produzir abacaxis e ao abacateiro produzir abacates, é intrínseco e próprio do cristão produzir frutos cristãos. Da mesma forma que a plena realização da roseira, da laranjeira, do pé de abacaxi e do abacateiro é produzir seus respectivos frutos, a plena realização do ser cristão, leigo e leiga, é produzir seus frutos de protagonismo e de testemunha do Cristo no coração do mundo. Se a roseira, a laranjeira, o pé de abacaxi e o abacateiro pudessem falar é muito provável que se diriam felizes por ser o que são e por produzir o que produzem.

Ser protagonista é ser possuído por essa necessidade de ir à frente, de ir em frente, de colocar-se na ponta, na frente, anunciando a sua alegria de ser o cristão e a cristã que dizem ser. Nessa compreensão, o verdadeiro cristão e a verdadeira cristã são possuídos por essa alegria e a anunciam na alegria de serem o que são, isto é, ele e ela não conseguem não anunciar. Significa, pois, a partir do exposto acima, compreender que: 

O protagonismo do cristão leigo e leiga, no e a partir do coração do mundo, não é uma concessão, um mandato ou delegação recebida, concedida, dada, como se favor fosse, mas que é intrínseco à sua própria condição de batizado e que é do batismo que decorre o direito e o dever intrínsecos de serem homens e mulheres, cristãos comprometidos com a implementação e a inculturação dos valores evangélicos no coração do mundo específico no qual cada um, e cada uma, vive, ora, convive e trabalha;

“O apostolado dos leigos é participação na própria missão salvífica da Igreja; que a esse apostolado são destinados ao receberem o Batismo e a Confirmação” (LG 33). Por isso, o ser leigo cristão implica necessariamente em ser protagonista da mensagem cristã onde se vive, convive, trabalha e ora; significa, ainda, compreender que o leigo cristão só é protagonista do Reino de Deus quando se diz cristão e age de acordo com essa sua profissão de fé. Trata-se da necessária coerência entre o dizer, o fazer e o ser.

10. O específico do cristão leigo e leiga.
O termo específico significa algo próprio, só de alguém, é uma característica só de alguns que os distingue dos demais. Significa compreender que o cristão batizado, leigo e leiga, exerce papel de titularidade no campo da evangelização, ou seja, um papel próprio, específico e só dele e, portanto, de sua única, exclusiva, indispensável, indeclinável e inalienável responsabilidade. Para tanto, ele e ela precisam:

Viver plenamente a sua secularidade, isto é, viver no, com e a partir do mundo que os cerca, isto é, viver sua vocação e missão específicas no coração do mundo no qual encontram-se inseridos;

Fermentar, salgar e ser luz do mundo, a partir de dentro desse seu mundo, santificando-o, ordenando-o e construindo-o na perspectiva do Reinado de Deus, isto é, ajudando a construir um mundo no qual Deus tenha lugar e vez e no qual Deus seja reconhecido, valorizado e amado através da sua presença e por causa da sua presença nesse seu respectivo mundo;

Compreender e assumir, também, que a qualidade cristã das famílias é de especial responsabilidade dos leigos e leigas, porque a “salvação da pessoa e da sociedade humana está estreitamente ligada ao bem estar da comunidade conjugal e familiar” (GS 47); que a sua família é uma escola de enriquecimento humano e que, por isso, todos aqueles que exercem alguma influência nas comunidades e nos grupos sociais trabalhem eficazmente para a promoção do matrimônio e da família cristã” (cfr.GS 52), uma família à moda da família de Nazaré e da comunhão trinitária;

Compreender e assumir, com conhecimento, responsabilidade, dedicação, amor e carinho o cuidado e a promoção da instituição família, querida por Deus, e isso porque se o cristão, leigo e leiga, não o fizer quem o fará, quem cuidará da família.


11. Como viver o específico da identidade do leigo e da leiga.
Outra questão que se impõe é a da vivência do específico da identidade laical. Essa vivência só pode se dar:

Testemunhando, em primeiro lugar, uma autêntica vida cristã em seu ambiente de vida familiar, de trabalho e de lazer, agindo alicerçado nos parâmetros da ética cristã; sendo Profeta, Rei e Sacerdote nas atitudes, comportamentos e ações desencadeadas no coração do mundo onde cada leigo e leiga vive, convive, ora, diverte-se e trabalha;

Fazendo com que as práticas cristãs de leigos e leigas sejam, prioritariamente, concretizadas no mundo e na realidade na qual cada um e cada uma vive, convive, se relaciona, trabalha e faz seu lazer.


12. Onde historiar e colocar em prática o específico do leigo e da leiga.
Cabe destacar, no início desse item, o que escrito na Gaudium et Spes, ao dizer que “o Concílio exorta os cristãos, cidadãos de uma e outra cidade, a procurarem desempenhar fielmente suas tarefas terrestres, guiados pelo espírito do Evangelho” (GS 43). A partir dessa citação e das compreensões que vêm sendo desenvolvidas nesse estudo, é possível deduzir, com facilidade, que o lugar próprio, específico, privilegiado e prioritário onde tornar história esse específico do leigo e da leiga é o vasto, complexo e dinâmico mundo da política, do social, do econômico, da cultura, das ciências, das artes, da técnica, da comunicação, da vida, das organizações e articulações nacionais e internacionais; que também é nas questões relacionadas com a família, com os jovens, com a educação, com o trabalho, com os sofrimentos e as diferentes formas de exclusão.

Para construir a história cristã e viver a vida de cristão, o lugar próprio do leigo e da leiga é, portanto:

O mundo secular, e não dentro ou em torno de um Templo, isso porque o cristão, leigo e leiga, não encontram dentro do templo o seu campo específico de ação, ou seja, o templo é apenas um lugar de celebrar, em comunidade, a vida e a fé cristã professadas;

Estar comprometido com a evangelização, a santificação e o ordenamento do mundo para Deus, no e a partir do mundo, sendo essa a modalidade de vida que caracteriza a distinção ou a diferença entre o cristão, leigo e leiga, e o presbítero, o religioso ou a religiosa;

No e a partir do mundo no qual vive, convive, realiza o seu lazer e, em especial, no lugar onde exerce o seu labor, a sua profissão.


13. Desafios presentes no lugar de exercício da vocação e missão laicas
O Brasil é um país inserido num mundo globalizado com todas as suas conhecidas conseqüências e o leigo e a leiga cristãos vivem e se existencializam, num aqui e agora concretos, marcado pelas características desse mesmo mundo globalizado. Diante dessa realidade, leigos e leigas precisam saber e ter consciência que:

O neoliberalismo capitalista, com o seu espírito alicerçado em seus valores, se opõe aos valores propostos pela prática de Jesus; isso porque, na proposta de Jesus, o ser humano é digno e vale por sua imagem e semelhança com Deus, quando na proposta neoliberal o ser humano merece respeito e vale por aquilo que tem, possui, consome ou produz;

A exclusão e a marginalização são conseqüências de um processo que consagra um projeto global neoliberal capitalista, intrinsecamente excludente; que nele, as vantagens são concebidas para poucos; que o outro não pode participar; que o outro vale pelo quanto produz e consome e que individualismo e egoísmo são a sua marca registrada;

A concentração da riqueza e da renda é um processo já crônico no Brasil, na América Latina e nas demais partes do mundo, constituindo-se numa característica intrínseca ao sistema neoliberal capitalista;

Como conseqüência dessa realidade acima, observa-se a queda da qualidade de vida das maiorias populacionais, através de um salário mínimo insuficiente, da inadequação de investimentos na área social, na educação, saúde, alimentação, mobilidade urbana, habitação;

A presença do crime organizado, da corrupção em quase todas as instâncias e segmentos da sociedade, tanto civil quanto pública, é uma realidade; que a discriminação generalizada por questões de gênero e raça, a exclusão, a repressão e a falta de respeito à dignidade humana é uma marca dessa mesma sociedade neoliberal capitalista;

O pagamento de uma dívida pública, externa e interna, de origens não claras, duvidosas e impossíveis de serem pagas, torna-se um fardo pesado demais para ser carregado pela imensa maioria populacional, nada se fazendo, ou muito pouco, para mudar o status quo organizacional e institucional da sociedade brasileira e mundial;

Essa qualidade social, cultural, econômica e política é naturalizada e passa a fazer parte da paisagem brasileira e, por isso mesmo, aceita, sem causar mais qualquer tipo de indignação ética, entendendo-a como se natural fosse essa realidade.


14. Desafios, para o leigo e leiga, presentes na realidade intra-eclesial.
Algumas práticas tradicionais da Igreja fazem com que sejam encontradas dificuldades e desafios para se viver a vocação e a missão da verdadeira Igreja de Jesus, o Cristo. Essas manifestações tradicionais de ser Igreja provocam dificuldades de superação porque muitos continuam pensando, e outros, voltando a pensar, que para existir a Igreja Povo de Deus a mesma só pode acontecer dentro de uma comunidade de fiéis, exclusivamente voltados para si mesmos, ou seja, intraeclesial.

Entre as causas provocadoras da dificuldade de superação desses desafios podem ser citadas a existência e/ou a presença:

De uma visão de Igreja demasiado clericalizada, isto é, compreender que da Igreja fazem parte apenas os bispos, padres e religiosos e também da existência de leigos e leigas que, muitas vezes, são mais clérigos e mais padres que o próprio clero e padres;

De leigos e leigas que se sentem incapazes de viver vida cristã sem que o padre esteja sempre junto com eles ou que sempre lhes aponte e decida o que devem e/ou podem fazer ou não fazer em seus respectivos ambientes do coração do mundo;

De uma visão dicotômica entre fé e vida, entre a religião confessada e a vida vivida no dia-a-dia dos mundos específicos, fazendo com que leigos e leigas se esqueçam de viver e testemunhar a sua opção de fé, em primeiro lugar, no coração do mundo;

De uma religiosidade cristã nada tendo a ver com as questões sociais e/ou com o resgate da cidadania e da dignidade humana, acreditando até muito em Jesus, mas esquecendo-se de crer como Jesus acreditou e esteve comprometido com os valores do Reino de Deus;

Do fato de que, muitas energias e tempo são gastos com brigas e divisões entre os movimentos, pastorais e com a própria hierarquia eclesial, esquecendo-se da riqueza e da diversidade de alternativas e de dons que cada leigo e leiga, cada movimento e pastoral tem para se colocar a serviço do Reino de Deus;

Da absolutização de posições e de concepções particulares de entender Igreja, por parte de leigos e de padres, absolutizando modos e lugares como únicos meios de salvação, de evangelização e de ser Igreja, ou seja, leigos e padres afirmando que para alguém se salvar a condição é participar desse ou daquele movimento, dessa ou daquela devoção.

Do fato de leigos e leigas, padres e bispos, virem a fazer parte de “uma Igreja que está tão bem organizada que não mais precisa de fé para funcionar”, vindo a transformarem-se apenas em  trabalhadores remunerados e descomprometidos de uma instituição e em funcionários da fé e da oração dos outros.


15. Entraves e doenças.
No contexto da vivência e do gerenciamento eclesial são encontradas muitas doenças que se transformam em entraves, vindo a impedir a vivência de uma vida mais parecida com a proposta de Jesus. Sofre-se de muitas doenças que precisam ser curadas. Entre essas doenças, que se transformam em entraves, podem ser citadas a doença: 

Do clericalismo, do autoritarismo, do querer ser mais padre que o próprio padre e a doença do viver dicotomia entre fé e vida.

Do impor e do absolutizar o jeito particular, o jeito do grupo, de cada um ou de cada uma de ser Igreja, entendendo como se esse seu jeito fosse o único jeito e forma de alguém ser cristão, ser Igreja, viver vida cristã e com isso salvar-se;

Do ficar bobamente perdendo tempo com intrigas e brigas dentro da Igreja, esquecendo-se da riqueza e da diversidade dos dons que são dados a cada um e a cada uma ou a cada grupo, dons esses que precisam ser colocados a serviço da construção do Reino de Deus e da Igreja Povo de Deus;

Da desorganização, da falta de unidade, da falta de compreensão, de acolhimento, de respeito, de valorização e de promoção do diferente que se encontra presente na riqueza da Igreja de Jesus, assumindo que diferente não é sinônimo de contrário.

Sobre a dicotomia entre fé e vida, presente no contexto da Igreja, a Gaudium et Spes se expressa, com muita ênfase, dizendo que “este divórcio entre a fé professada e a vida cotidiana, de muitos, deve ser enumerado entre os erros mais graves do nosso tempo. Os Profetas do Velho Testamento já denunciaram com veemência esse escândalo. E no Novo Testamento, o próprio Jesus Cristo o ameaçava muito com graves penas. Portanto, não se crie oposição artificial entre as atividades profissionais e sociais de uma parte, e de outra, a vida religiosa” (GS 43).


16. Formação, organização e articulação do laicato como necessidade.
Para fazer frente a todos esses desafios, apontados nesse estudo que fala da vocação, da missão e da identidade laical, que aborda a necessidade de ser igreja a partir da realidade, que fala sobre a necessidade de criar consciência eclesial, de conhecer qual o dever dos padres e bispos, o que significa viver autonomia e comunhão, qual o modelo de comunhão adotado pela Igreja, qual a qualidade de relação necessária entre a hierarquia e o laicato, quais as características da identidade laical, qual o específico do leigo e da leiga, como viver esse específico, quais os desafios presentes no lugar da atuação especifica do laicato, quais os desafios identificados dentro da própria Igreja e quais os entraves e as doenças encontradas. Neste item, frente a todas essas constatações apresentam-se outros novos desafios que são a formação, a capacitação, a organização e a articulação dos leigos e leigas.

Verifica-se que, como condição para o exercício de uma atuação mais eficiente e eficaz, é indispensável, intransferível, inadiável e necessário:

Buscar uma melhor formação, organização e articulação dos cristãos leigos e leigas, para melhor serem a Igreja Povo de Deus nas diferentes realidades, nas quais vivem e, organizados e articulados, com mais veemência, eficácia, consistência, força e consciência poderem agir em favor da construção de uma sociedade mais humana, mais justa, solidária e fraterna, tendo em vista a implementação e a inculturação dos valores do Reino de Deus, anunciados por e em Jesus de Nazaré;

Melhorar a organização para somar forças, para aprender mais, para serem mais fortes e para apoiarem-se mais, melhor e mutuamente;

Conhecer mais a diversidade e a riqueza de carismas presentes na vida da Igreja e também buscar um melhor conhecimento do cerne da proposta cristã e do específico da vocação, missão e compromisso dos cristãos leigos e leigas inseridos no mundo que vivem, oram, trabalham, se divertem e convivem;

Criar consciência e assumir realmente a vocação e a missão específicas de cristãos leigos e leigas, que é a de estar no mundo para, a partir de dentro, poder modificá-lo, considerando que nenhuma conversão e/ou mudança de atitudes acontece desde fora; é  sempre a partir do interior de cada um, de dentro das organizações, das associações, dos movimentos e instituições que as mudanças podem acontecer, ou seja, também é de  dentro do mundo no qual se vive, ora, convive e trabalha que podem acontecer as mudanças sólidas, contínuas, consistentes e transformadoras para uma qualidade de vida mais de acordo com a proposta de Jesus.

Para fazer frente a esses desafios, leigos e leigas, são estimulados e encorajados a se organizarem, a se capacitarem, a se formarem e a se articularem para poder melhor cumprir e dar conta desses seus desafios resultantes da sua vocação específica.

Nesse contexto, o laicato conta com um grande aliado que é o Código Canônico, pois, de acordo com esse Código, os leigos e leigas têm o direito de fundar e dirigir associações para fins de caridade e piedade, para favorecer a vocação cristã no mundo e para a consecução comum dessas finalidades (Cânone 215), visando à concretização do Reinado de Deus já, aqui e agora.

Diante dos muitos desafios decorrentes da vocação e da missão dos cristãos leigos e leigas e diante dos desafios de se trabalhar nesses processos de mudança, de conversão e de ressignificação do jeito de ser Igreja no coração do mundo, percebidos como importantes e urgentes, há a necessidade de que esses mesmos leigos e leigas sejam competentes, no mínimo em igualdade de condições com as outras forças presentes neste mundo porque, em muitos desses ambientes, só se é aceito, se muito competentes ou mais competentes que seus próprios colegas de trabalho, criando assim condições de serem também ouvidos nas questões de cunho religioso.

É, entretanto, convicção que a inculturação da proposta cristã, além da competência profissional dos leigos e leigas, se dá, principalmente, pelo testemunho de uma prática profissional e de uma vida alicerçada na ética humano-cristã, cujos valores que a fundamentam são muito diferentes dos valores integrantes, qualificadores e/ou matizadores da ética e/ou da espiritualidade neoliberal capitalista.

É, portanto, fundamental e necessário entender e assumir que se faz urgente buscar muita formação e competência nos assuntos específicos da vida, da vocação e da missão dos cristãos leigos e leigas, bem como muita formação e competência no campo específico de suas respectivas profissões; isso para que, respeitados na sua qualidade e competência profissional venham a se abrir também possibilidades de presença e de aceitação do cristão leigo e leiga na discussão e na apresentação de temáticas religiosas, cristãs e éticas nesses seus contextos de trabalho.


17. Apontando para conclusões.
Após esse estudo, discussão, ponderações e apresentação de compreensões e princípios a serem assumidos e vivenciados, por leigos e leigas comprometidos com as desejadas transformações no coração do mundo onde vivem e trabalham, cabe destacar que:

Os cristãos leigos e leigas têm o direito de buscar sua formação cristã e específica e também o direito de se associar livremente dentro da comunhão da Igreja;

Os cristãos leigos e leigas têm uma missão específica que é a de ser presença de Igreja no Coração do Mundo, seu lugar próprio, prioritário e específico para viver a sua missão eclesial; que possuem missão própria e função própria e por isso lhes cabe o direito de reunirem-se para melhor compreender e assumir esse seu múnus específico, se assim o desejarem;

Os cristãos, leigos e leigas, e suas respectivas organizações, são importantes e indispensáveis para a existência da Igreja Povo de Deus e para a ação organizada dessa mesma Igreja no Coração do Mundo, constituindo-se nos principais protagonistas da proposta do Reinado de Deus nesse seu campo específico;

São desafiados a serem, não membros de segunda categoria, mas a assumirem o seu lugar próprio de protagonistas e de pleno direito de missão no Coração do Mundo;

A família, os jovens, a educação, a saúde, as comunidades eclesiais, a política, a economia, a pesquisa, a ciência e as técnicas, o campo do lazer, da comunicação, do social, aguardam os seus profetas.

A Igreja realmente acontece na comunidade, nas organizações, movimentos, pastorais, associações de classe, instituições e ambientes onde o cristão leigo e leiga faz a história, vive, convive, trabalha, celebra; é onde também necessita de apoio para a sua vida e vivência espiritual, onde precisa de acolhida, de compreensão, de valorização e de promoção de sua dignidade de homem e de mulher e ainda onde o mesmo sonha seus sonhos, busca seu sentido de vida e constrói suas utopias.

O comprometimento com as causas, valores e proposta de Jesus de Nazaré, o Cristo, e o engajamento na construção da Igreja Povo de Deus, acontecem na família, na sua comunidade e grupo de fé da Linha São Pedro, da Picada Café, do Bairro Santa Marta, da Paróquia Santa Teresinha, presentes numa Igreja Particular Diocesana. Cada cristão leigo e cada cristã leiga testemunha, pois, a sua fé dentro e a partir de uma família e comunidade concretas, onde vivem e convivem o João, a Maria, o Felipe, a Luana, o José, o Rodrigo, a Raimunda, a Amanda, a Ida, o Xico dos Anzóis, todos com seus endereços, uma história de vida singular, um trabalho específico, próximos uns dos outros, conhecidos e reconhecidos por seus companheiros e suas companheiras de caminhada eclesial. Nessa realidade está, em primeiríssimo lugar, para cada cristão leigo e para cada cristã leiga, o coração do mundo dentro do qual devem testemunhar a sua adesão específica de fé e é também nela que cada um e cada uma precisa colocar e aquecer o seu coração.

À moda e jeito do cidadão e da cidadã, cada cristão leigo e cada cristã leiga, deve participar opinando, analisando, propondo e decidindo, onde cada leigo e cada leiga encontra-se presente e atuante como integrante de uma Igreja viva e comprometida e com uma vocação e uma missão a cumprir e a testemunhar. Isso significa que, de acordo com o grau de inserção e atuação de cada um e de cada uma, os mesmos devem se fazer ouvir e serem ouvidos, respeitados e promovidos.

O grande princípio inspirador, motivador e norteador dessas reflexões, estudos e provocações acima, é o compromisso ético jesuano-cristão decorrente do batismo e confirmação de cada um e de cada uma dos cristãos leigos e leigas, frente a essa realidade que se apresenta tão desconforme com o Plano de Deus para muitos dos homens e mulheres dos tempos do aqui e agora.

Como estratégia para todas as ações e iniciativas é prudente e necessário adotar o princípio da construção coletiva, da colegialidade, da corresponsabilidade e comunhão no serviço e a serviço do Reinado de Deus, articulando-se com os demais cristãos e/ou organismos da Igreja Povo de Deus.

O Concílio Vaticano II tem uma palavra forte e animadora para os cristãos, leigos e leigas, ao dizer que “cada um dos leigos deve ser, perante o mundo, testemunha da ressurreição e da vida do Senhor Jesus e sinal do Deus vivo. Todos juntos, cada um na medida das suas possibilidades, devem alimentar o mundo com frutos espirituais (cf.Gal 5,22), e devem infundir-lhe o espírito que é próprio dos pobres, dos mansos e dos pacíficos, daqueles que o Senhor no Evangelho proclamou bem-aventurados (cf.Mt 5,3-9). Numa palavra, “o que a alma é no corpo,  sejam-no os cristãos no mundo” (São João Crisóstomo) - (LG 38).
                                               
           
                                                                 O coração do mundo terá seus Profetas?

Que o Espírito de Deus, que é Santo,
           ilumine a todos os cristãos, leigos e leigas, nesses seus desafios ...

Campo Bom, 25 de julho de 2012
                                                                                         
                                                                                             José Wilson Schlickmann






Por um Ser Humano mais humano

Prof. José Wilson Schlickmann

Queridos alunos e alunas,
é importante a gente ter os pés bem firmes na terra que somos 
para melhor entender a proposta de Jesus para a nossa vida

 


              Javé Deus formou o homem do pó da terra e insuflou nas suas narinas um hálito vital; assim o homem se tornou uma nêfesh vivente (Wolff, 1983, p.22).

                Mulheres e homens, somos os únicos seres que, social e historicamente, nos tornamos capazes de apreender. Por isso, somos os únicos em quem aprender é uma aventura criadora, algo, por isso mesmo, muito mais rico do que meramente repetir a lição dada. Aprender para nós é construir, reconstruir, constatar para mudar, o que não se faz sem abertura ao risco e à aventura do espírito (Freire, 1997, p.77).

Ao longo da história do homem e da mulher, questões de fundo, que sempre os acompanharam, são as que se perguntam sobre a sua identidade e o seu ser e as que se perguntam sobre o para quê do seu existir, do seu fazer e sonhar, enfim, questões sobre o sentido da sua existência. Essa busca de respostas acontece com seres humanos, sujeitos situados num contexto histórico, acontece com seres humanos que se constroem, que têm suas esperanças, suas utopias, que sofrem, que se alegram, enfim, essa busca contínua é intrínseca à própria condição de homem e de mulher, seres históricos.

O homem e a mulher constituem-se protagonistas de todas as culturas constituídas de esforços, progressos, recuos e avanços verificados na história humana; constituídas, ainda, de suas crenças, valores, relações, daquilo que fazem, cultivam e valorizam. Não haveriam práticas educativas, não haveriam conhecimentos escolares, espiritualidades, valores, tecnologias, avanços científicos, não fosse a existência do homem e da mulher conscientes de sua incompletude. Tudo o que existe de consciente, passa, necessariamente, por um ser humano que se pergunta sobre si mesmo, sobre o seu existir, sobre o sentido de tudo que o cerca, sobre o sentido de tudo o que faz e sobre o sentido de todos os seus sonhos e utopias. “Não me basta fazer perguntas; desejo saber responder à única pergunta que parece incluir tudo o que eu enfrento: por que motivo estou aqui?” (James, 1999, p.9).

Por que pesquisas que, como a medicina, a química e a farmácia, a sociologia, a psicologia e a teologia, proclamam a sua vocação humana, começam, de repente, a esquecer do homem?...E, de improviso, no meio de um consumo em massa de instrumentos e medicamentos, de utopias e psicanálises, explode uma fome elementar pela antropologia perdida: que vem a ser o homem? (Wolff, 1983, p.9).

E continua, o autor citado, suas interrogações, refundando a pertinência desses questionamentos, estranhando a estranheza que o homem e a mulher têm de si, da sua natureza, do seu lugar, da sua importância, da sua dificuldade de compreensão de si mesmo e do outro, inseridos nos diferentes contextos que os circundam.

 O que ele sabe sobre a sua natureza, sobre o seu tempo e o seu lugar no mundo? Será que, no meio da sua plenitude de saber, a sua essência mais própria acabou por resultar-lhe a coisa mais estranha?...Na mesma medida em que uma pessoa não se pode colocar em frente de si mesma nem observar-se de todos os lados; na mesma medida em que uma criança não pode saber, por si mesma, quem são seus pais, o homem precisa fundamentalmente do encontro com um outro que o investigue e lhe dê luz. Mas, onde está o outro a quem o ente humano possa perguntar: quem sou eu? (Wolff, 1983, p.10).

O homem e a mulher têm se apresentado e se manifestado através das suas ações e expressões na corporeidade. Essas suas expressões são multifacetadas, plurais e universais e, ao mesmo tempo, constituídas de caráter próprio, singular e particular. Essa sua pluridiversidade e, ao mesmo tempo, essa sua singularidade ao manifestar-se individual, acontecem na medida em que cada homem e cada mulher, de um lado, participam da universalidade comum aos seres humanos e, de outro, ao agirem, imprimem as suas marcas e os seus sinais, próprios e particulares, naquilo que fazem e naquelas ações com as quais se envolvem, se comprometem, projetam e sonham.

São plurais, as ações do homem e da mulher, na medida em que os mesmos são plurais em suas construções e em seus projetos de sentido de vida eleitos. Há, diante do homem e da mulher, uma gama de possibilidades a serem eleitas, dependendo, apenas, do fator eleição de sentido que os mesmos queiram dar às suas vidas e existências. O ato de eleger, constitutivo intrínseco do ser humano, lhe faculta a possibilidade de eleições includentes e excludentes. O livre arbítrio é a garantia do homem e da mulher de poderem eleger, escolher, incluir e excluir.

São universais suas ações e expressões porque o homem e mulher comungam e participam, com os outros seres humanos, de formas, estilos e modelos, também comuns ao agir e ser de outros homens e mulheres, seus iguais. Ao mesmo tempo, são particulares, porque o homem e mulher agem de forma própria, única e sempre renovada; também, porque os mesmos constituem-se na singularidade e na individualidade; ainda, porque constituídos originais, porque eles mesmos e, por tudo isso, insubstituíveis em suas eleições e decisões.

O agir do homem e da mulher, e eles próprios, acontecem matizados, a partir do jeito próprio e particular de conceberem a realidade que os cerca e a partir da forma própria de interagirem com o seu entorno. Esse agir acontece fundamentado em suas crenças e suas convicções, alicerçado em seus valores, sentido de vida eleito, consciência e pontos de vista que têm em relação à sua realidade e à sua situação num contexto determinado e localizado, num tempo e espaço, num aqui e agora.

O homem e a mulher, ao agirem, o fazem, ainda, de forma intencional, porque suas ações respondem a apelos, a necessidades, a interesses, a desejos, a sonhos seus e, para alcançá-los, agem fundamentados e alicerçados em seus critérios eletivos. Esses, por sua vez, encontram sustentação em seus valores, em suas convicções, em seus pontos de vista, em seus saberes e no sentido que elegem e constroem para as suas existências. O ser humano vive elegendo aquilo que cabe, e é pertinente, dentro de seus critérios de importância, aquilo que vem ao encontro dos seus referenciais éticos de vida, aquilo que vem ao encontro dos seus valores, dos seus interesses, dos seus sonhos, nos quais entende haver um sentido de existência, nos quais entende haver um sentido de fazer a sua vida valer a pena.

Do ponto de vista antropológico, cada homem e cada mulher, se experimenta como um ser sujeito situado: sujeito, porque constituído pelas dimensões estruturais e, sujeito situado, porque vive, se constitui, se expressa e se constrói nas relações que estabelece com o mundo, com o outro e com o transcendente, relações essas mediadas na sua dimensão de corporeidade. Essa experiência não acontece numa subjetividade abstrata, mas sim numa experiência concreta, situada, histórica, encarnada, constitutiva e intrínseca a cada homem e a cada mulher singulares.

Enquanto sujeito situado, o ser humano busca construir-se homem e mulher com os outros, porque constituído relacional. Interroga-se sobre si, sobre seu sentido existencial e sobre os seus que-fazeres, porque desejoso de auto-compreensão e de autoconstrução, porque constituído de dimensão espiritual, da qual e na qual brotam as questões de futuro, de transcendência, de sentido do seu ser e da sua existência.

“O homem não se resigna a uma vida carente de sentido porque nele aflora sempre o problema de saber se a vida merece ou não ser vivida” (James, 1999, p.9). Cabe a cada homem e a cada mulher uma tarefa a ser por eles empreendida que é a da eleição de sentido existencial, que é a da sua auto-construção, que é a da busca de sua completude e, nessas buscas, elege as suas condições de auto-compreensão e de auto-realização.

Nessa busca de compreensão de si mesmos, a primeira realidade com a qual o homem e a mulher se deparam, é com a realidade da sua condição de seu próprio ser situado. Essa é a primeira realidade que se apresenta ao ser humano, sujeito situado, ou seja, a realidade que ele experimenta como questão sobre si mesmo é o seu estar situado num aqui e num agora. Sempre serão, um homem e uma mulher, inseridos e imbricados num situacional determinado, que se perguntam sobre si mesmos e que se interrogam a respeito do sentido de suas vidas, sobre o sentido de estarem onde estão e como estão, de fazerem o que fazem e como fazem e de sonharem com o que sonham.

Esse processo, contínuo e sempre mais aprofundado, de busca de compreensões sobre o ser humano sujeito situado, sobre suas propriedades constitutivas estruturais e relacionais e sobre as suas diferentes modalidades de expressividade, é uma necessidade intrínseca ao homem e à mulher e, por isso, indispensável para fundamentar qualquer projeto de existência e qualquer proposta de prática educativa e de convivência, que tenha como fins, ajudar na busca de eleição de sentido para a vida do próprio homem e mulher, em sua totalidade constitutiva e existencial, em vista da sua realização e felicidade.


1. As dimensões de estruturalidade do ser humano.

Cabe, e é pertinente, nesse processo de busca de compreensão do homem e da mulher, verificar, em primeiro lugar, a sua condição de ser humano sujeito. Porque ser humano sujeito, a sua totalidade estrutural, intrínseca e dialeticamente articuladas, imbricadas e integradas, é composta pelas categorias “do corpo próprio, do psiquismo e do espírito, cuja unidade tem lugar na vida segundo o espírito, que é a vida propriamente humana” (Vaz II, 1995, p.10). As dimensões corpórea, psíquica e espiritual são intrínsecas a cada homem e a cada mulher e, por isso, indispensáveis para a compreensão de ser humano que se deseja construir e/ou desvelar.

A corporeidade própria, entre as três dimensões estruturais, é aquela pela qual e na qual manifesta-se a primeira percepção do ser humano, tanto para si mesmo, quanto dele diante dos outros. Na corporeidade, o homem e a mulher, existem diante de si mesmos e diante dos outros. Nesse seu existir corpóreo são identificados três significados básicos para a palavra corpo: como totalidade física, como totalidade biológica e como totalidade pessoal.

Na totalidade física, o homem e a mulher, partilham sua igualdade com e no mundo físico, fazendo parte do mesmo. Na totalidade biológica, estes mesmos homem e mulher, são partícipes do mundo biológico, e por isso, integrados às suas leis e dinâmicas de vida. Na totalidade pessoal, o homem e a mulher espirituais, distinguem-se dos demais seres físicos e biológicos, constituindo-se sujeitos. “Somente neste último caso, podemos falar de corpo como expressão do sujeito e de um eu corporal, o que não é o caso do corpo físico e do corpo biológico” (Junges, 1999, p.76).

            Essas percepções de si mesmos como totalidade, e perante o outro também como totalidade, acontecem alicerçadas e relacionadas com o seu corpo próprio, isto é, com a sua dimensão de corporeidade. Esse processo de percepções de si e do outro são históricas. O ser humano, na sua corporeidade, gradativamente, tem a percepção do seu corpo próprio, constituindo-o expressão de si mesmo para si e para os outros, “possibilitando que o corpo seja a própria manifestação da pessoa e não um puro instrumento ou acessório dispensável” (Junges, 1999, p.76). Sem a corporeidade não há manifestação de um eu indivíduo a um outro eu indivíduo. A dimensão corpo, próprio do ser humano em sua totalidade existencial, é, portanto, constitutivo intrínseco da sua expressão a si mesmo e aos outros.

Nessa compreensão significa assumir que o corpo próprio, “como dimensão constitutiva e expressiva do ser humano” (Junges, 1999, p.76), constitui-se na manifestação do homem e da mulher a si mesmos e aos outros, um corpo sujeito que se revela a si e se revela aos outros. “Como corpo próprio tem uma presença intencional e está de uma maneira ativa como ser-no-mundo” (Junges, 1999, p.77). Age transformando, construindo-se, buscando modificações. É também na dimensão de corporeidade, ou no corpo próprio, que as dimensões psíquica e espiritual e as dimensões relacionais e as outras formas históricas de expressão do ser humano se manifestam.

É a partir da compreensão de ser humano, identificado com a sua corporeidade, ou com o seu corpo próprio sujeito, que se fundamenta afirmar que o ser humano é o seu corpo, que é presença corporal imediata e que se expressa num corpo próprio sujeito. O ser humano é, por isso mesmo, intrinsecamente, o seu corpo, a sua corporeidade. “O corpo é o próprio sujeito, estruturando-se em formas expressivas que traduzem sua presença exteriorizada no mundo” (Junges, 1999, p.78).

É por isso que não há respeito à dignidade humana sem que a corporeidade, do homem e da mulher, seja também respeitada, acolhida, valorizada e promovida, sem que haja o reconhecimento e a valorização do ser humano corpo. É condição da dignidade humana, portanto, o reconhecimento, a valorização e a promoção do ser humano na sua dimensão de corporeidade. Entretanto, esse mesmo homem e mulher, não se esgotam nessa sua dimensão de corporeidade.

O psiquismo é outra das dimensões estruturais do ser humano, que é também mediatizada na dimensão corpórea, como a própria corporeidade a é. O ser humano psíquico precisa da corporeidade humana para manifestar-se, para auto-revelar-se, visto ser a corporeidade própria a sua condição de percepção, de expressão e de auto-revelação e, ainda, visto ser, a corporeidade, a sua condição de presentificar-se a si mesmo e aos outros, de estar consigo e de estar com os outros. A dimensão corpórea é a mediadora da dimensão psíquica do ser humano e é, por isso, na corporeidade do homem e da mulher, que o psiquismo humano se manifesta e se torna imanente.

 O psiquismo não é presença imediata do sujeito face aos outros e à realidade, mas mediatizada pela presença somática; necessita da linguagem do corpo para expressar-se. O psiquismo representa uma posição mediadora entre a presença imediata ao mundo pelo corpo próprio e a presença interior absoluta pelo espírito (Junges, 1999, p.80).

Constitui-se, o psiquismo, em uma estrutura intermediária entre a dimensão somática e a dimensão espiritual do homem e da mulher. É o elemento de união entre o corpóreo e o espiritual. A dimensão psíquica presentifica-se, pois, também mediatizada na corporeidade. “No domínio psíquico, começa o homem interior e delineia-se a interioridade, a consciência, a reflexividade” (Junges, 1999, p.79). Essa dimensão psíquica do ser humano caracteriza-se, de um lado, por garantir a irredutibilidade do psíquico ao somático porque o ser humano transcende o seu corpo e se abre para a sua realidade interior, que não é somática e, de outro lado, por garantir a irredutibilidade do ser humano ao psiquismo porque o mesmo não pode ser reduzido à sua interioridade, pois confrontaria com o horizonte de sentido, que transcende o seu mundo psíquico, a dimensão espiritual.

O psiquismo faz junção da corporeidade pessoal com a dimensão espiritual, característica identificadora do ser humano. “O psiquismo representa a posição mediadora entre a presença imediata ao mundo pelo corpo próprio e a presença interior absoluta pelo espírito” (Junges, 1999, p.80). Nesse sentido, da mesma forma como na dimensão de corporeidade, não existe respeito à dignidade humana sem que haja respeito, acolhida, valorização e promoção do mundo interior da pessoa, sem que haja o reconhecimento e a valorização do ser humano psíquico.

A terceira das dimensões de estruturalidade do ser humano, é a sua dimensão espiritual. Essa transcende a corporeidade e o psiquismo e garante a unidade ontológica de cada homem e de cada mulher e lhes confere condições de definição de sentido de existência. É na dimensão espiritual que as questões sobre o sentido da vida, sobre o significado do trabalho, e da própria existência do homem e da mulher, deverão encontrar respostas de significado e sentido existencial.

No âmbito da dimensão espiritual, a questão básica, não parece ser se a vida tem que valer a pena ou não. Nessa dimensão, a questão pertinente é qual vida sim e qual vida não, qual qualidade de vida vale a pena viver e qual qualidade de vida não vale a pena viver. Se uma vida tem que valer a pena, é nessa dimensão, a espiritual, que o homem e a mulher constroem a resposta de qual vida valerá a pena. Isso porque

 o espírito é o lugar de manifestação do sentido. Ninguém pode viver sem descobrir um sentido para a sua vida, a sua ação, a sua realidade. A existência, os outros, o mundo, têm um significado que se revela no espírito. O ser humano é um ser de significados; busca descobrir o sentido de todas as coisas. O espírito é a revelação e a atualização do sentido de todas as coisas (Junges, 1999, p.82).

É na dimensão espiritual que o homem e a mulher compreendem e fazem as suas eleições de qual vida sim e de qual vida não. O eu sujeito, de cada uma das pessoas, as relações de cada homem e de cada mulher com o outro, com o mundo e com o transcendente, conferem e adquirem os sentidos e significados na dimensão espiritual. Nessa dimensão, o ser humano encontra espaços e razões para definir e eleger um sentido de vida para a sua condição existencial e é, também nessa dimensão, que o mesmo ser humano encontra espaços e razões para definir e eleger qual o valor e qual o sentido a ser conferido às suas relações com o outro, com o mundo e com o transcendente. É nessa dimensão que o homem e a mulher definem e elegem a qualidade dos valores a serem agregados à sua dimensão espiritual, vindo a constituir-lhes a sua espiritualidade, ou a sua filosofia de vida, ou ainda a sua qualidade ética.

É nessa dimensão, ainda, que o ser humano encontra um horizonte sempre aberto à construção das suas utopias, dos seus sonhos e das suas novas possibilidades de eleição de sentido existencial, um horizonte sempre aberto à compreensão do sentido das novas manifestações da realidade que o cerca e das novas compreensões de sentido que o mesmo faz dele próprio e dos outros como sujeito relacional, dinâmico e situado. “A experiência espiritual como experiência de sentido é a experiência mais fundamental e abarcadora do ser humano” (Junges, 1999, p. 83). É dentro desse contexto de compreensão que a vida, segundo o espírito, “é a vida propriamente humana” (Vaz II, 1995, p.10), isto é, o diferencial significativo humano é marcado e alicerçado na e pela dimensão espiritual em sua relação com o transcendente.

 As próprias obras do espírito humano (arte, filosofia, religião) apontam para essa transcendência do ser humano. O espírito é o lugar da manifestação do sentido de todas as coisas. Assim, ele procura dar sentido à sua existência e ao seu agir, sentido que não se identifica com sua exterioridade somática nem com sua interioridade psíquica, mas transcende-as, abrindo um horizonte infinito (Junges, 2000, p.160, in Osowski et alii).

A experiência espiritual da transcendentalidade e da infinitude são a mais fundamental, abarcadora e radical experiência que o ser humano faz da sua inteireza e da sua totalidade. Isso significa compreender que as dimensões da corporeidade e do psiquismo são assumidas no ser humano sujeito através da dimensão espiritual que garante sentido ao ser humano inteiro e totalidade. É nas dimensões espiritual, psíquica e corpórea que acontece a unidade do homem e da mulher, é nelas que acontecem a compreensão e a constituição da sua unidade ontológica. Mas, é na dimensão espiritual que o homem e a mulher, inteiros em suas histórias, garantem sentido e valor para as suas vidas. “É necessário uma identidade própria através da apropriação da exterioridade corporal e da interioridade psíquica como sujeito, para que possa emergir o dinamismo do horizonte transcendental da estrutura espiritual que abre para a busca da verdade e do bem” (Junges, 1999, p.83).

Na esfera da dimensão espiritual é que cada ser humano faz a eleição do sentido a ser conferido à sua vida, à sua história, às suas ações, aos seus projetos, ao seu trabalho, sua existência, suas esperanças, seus sonhos, concebidos, desejados e sonhados como possíveis. É, pois, na dimensão espiritual que o corpóreo e o psíquico humanos adquirem sentido, dignidade e valor de existência, isto é, sem a dimensão espiritual, homens e mulheres descaracterizam-se como seres humanos.

A compreensão de ser humano como unidade ontológica, na qual se encontram, dialógica e intrinsecamente imbricadas a dimensão corpórea, psíquica e espiritual e, o respeito a esse homem e a essa mulher assim concebidos, são promotores de um ser humano sujeito de sua história, com uma dignidade a ser reconhecida, valorizada e promovida. Aqui vale o já escrito para as dimensões corpórea e psíquica: não existe respeito à dignidade humana sem respeito, acolhida, valorização e promoção da dimensão espiritual do homem e da mulher, isto é, sem o reconhecimento e a valorização do ser humano espiritual.

A concepção de unidade ontológica do ser humano vai exigir que todos os homens e mulheres, na sua individualidade e singularidade, sejam entendidos e assumidos como sujeitos inteiros e com uma dignidade e um valor específicos a serem respeitados, acolhidos e promovidos. Será necessário conferir e reconhecer ao ser humano, homens todos e mulheres todas, o seu direito de experimentar valorizadas, acolhidas e promovidas a sua dignidade individual, o seu direito à auto-realização, o seu direito à conquista da totalidade existencial e o seu direito de terem seus direitos valorizados em plenitude, porque “o ser humano é fim em si mesmo e nisso consiste justamente a sua dignidade” (Junges, 1999, p.111). Em outras palavras, nisso constitui-se o ser humano integral. Portanto, acolher, respeitar e promover o homem e a mulher é dignificá-los em sua inteireza constitutiva.

O ser humano, ontologicamente concebido como unidade, a partir das suas dimensões estruturais, exprime para o mundo, para a sociedade e perante si próprio, a sua situação constitutiva na tríplice forma da presença corporal, da presença psíquica e da presença espiritual, mediadas na dimensão da sua corporeidade.

O ser humano sujeito é, assim, um dizer-se a si mesmo e aos outros e é, essencialmente, mediação através da sua corporeidade, na qual, dialógica e intrinsecamente unidas e imbricadas, se encontram a sua dimensão psíquica e a sua dimensão espiritual. As três dimensões estruturais circunscrevem a realidade do ser humano como sujeito, capaz de assumir-se, compreender-se e interrogar-se sobre si mesmo. Essas dimensões, intrínsecas e constitutivas do homem e da mulher, manifestam-se mediatizadas no mundo, no outro e no transcendente, isto é, apresentam-se através das dimensões constitutivas relacionais e de outras modalidades de expressão do homem e da mulher construídas em sua história.


2. As dimensões de relacionalidade do homem e da mulher.

Cabe, e é pertinente, verificar e identificar, nesta parte do estudo, a condição do ser humano sujeito situado.

 As estruturas antropológicas compreendem o ser humano como sujeito; as relações, como sujeito situado. As estruturas determinam a forma de expressão que o ser humano dá à sua realidade através das diferentes modalidades de experiência: o corpo, o psiquismo e o espírito. Trata-se agora de determinar o conteúdo dessa forma de expressão, adquirido ad extra pelas relações (Junges, 1999, p. 86).

O dizer-se presença no mundo, presença face ao outro e presença face ao absoluto, é próprio do ser humano situado. O homem e a mulher, na qualidade de sujeitos situados, por outro lado, são encontrados e constituídos nas suas dimensões relacionais. Esse ser humano, homem e mulher, é sujeito ativo e interativo na tridimensionalidade relacional com o mundo, com o outro e com o transcendente. Situa-se, no seu entorno, através das dimensões relacionais e constitui-se sujeito situado nessa tridimensionalidade relacional.

A totalidade estrutural é a que garante a unidade ontológica do ser humano e a mesma se expressa na tríplice forma da corporeidade, do psiquismo e do espírito. Essa mesma totalidade estrutural assegura-lhe a sua identidade ontológica e define-o como um ser-em-situação ou como um ser-de-presença na realidade com a qual se encontra intrínseca, imbricada e dialeticamente relacionado. Esse ser humano, inteiro e unidade ontológica, relaciona-se, portanto, com suas circunstâncias e, é também, constituído de e com as suas circunstâncias, de e com o seu entorno. Essas relações que acontecem na sua unidade ontológica de homem e de mulher são também seus constitutivos intrínsecos.

A relação dialética e intrínseca com a realidade que o cerca, e com as suas circunstâncias, é decorrente da unidade ontológica estrutural e relacional do ser humano. A unidade ontológica lhe confere uma abertura intencional à realidade na qual está situado e com a qual se relaciona situadamente, buscando sentido nessas suas relações, que é determinado, como condição fundante, pela presença da dimensão espiritual que se pergunta e constrói sentidos ao seu ser, pensar, fazer e sonhar e ao seu relacionar-se e expressar-se.

É importante destacar que, por unidade ontológica do ser humano, se entende o ser humano como sujeito inteiro situado e que é a totalidade do seu ser que se relaciona situadamente como sujeito ativo e interativo. Isto é, o homem e a mulher, em sua unidade ontológica, são compreendidos a partir da sua constitutividade estrutural e relacional. “O mundo exterior do corpo próprio, o mundo interior do psiquismo, e a identidade dialética do exterior e do interior no espírito constituem uma totalidade estrutural e é essa totalidade que define o homem como ser situado ou que circunscreve o espaço intencional da sua presença ao ser” (Vaz II, 1995, p.13).

O ser humano, pois, tendo garantido a unidade estrutural, que lhe assegura a sua identidade ontológica, una, indivisa, íntegra e, isso na condição de iguais uns aos outros, ao constituir-se, também a partir das suas relações diversificadas com o mundo, com os outros e com o transcendente, constitui-se intrinsecamente relacional e diversificado. Nessa sua constitutividade relacional, o mesmo constrói-se necessitado dos outros, necessário aos outros e diferente dos outros. Essa diversidade, multiplicidade e pluralidade de seres humanos, criados pelas conseqüências das suas diferentes modalidades de expressão e das suas diferentes relações constituídas com o mundo, com os outros e com o transcendente, torna-os, portanto, uns diferentes dos outros.

O ser humano, sujeito situado, vive uma relação tríplice com a realidade que o cerca. Mantém relação de objetividade com o mundo, de intersubjetividade com os outros e de transcendência com o Transcendente. “Na relação de objetividade a primazia é dada ao corpo próprio, na relação de intersubjetividade a primazia é dada ao psiquismo, e na relação de transcendência a primazia é dada ao espírito” (Vaz II, 1995, p.14).

Cada uma dessas esferas de relação, constituídas na unidade ontológica do corpo, psiquismo e espírito, fazem, do homem e da mulher, um ser-em-situação na sua totalidade estrutural existencial e relacional e o fazem também sujeito ativo e interativo circunstanciado. Ele é relacional como totalidade somático-psíquico-espiritual e essa unidade e totalidade estrutural e relacional, lhe assegura uma identidade ontológica como sujeito situado. Isto porque

 o corpo próprio é a condição de possibilidade da presença no mundo; o psiquismo, condição de possibilidade da presença face ao outro; o espírito, condição de possibilidade da presença face ao absoluto. O ser humano é ser-em-relação segundo a totalidade que o constitui como corpo, psiquismo e espírito. Ele é relacional como totalidade somático-psíquico-espiritual (Junges, 1999, p.86).

O ser humano sujeito só pode ser compreendido a partir do seu circunstancial, a partir do seu entorno e da sua realidade relacional que se expressa na singularidade, na unidade e na totalidade situada. As três esferas de relação do ser humano, de objetividade com o mundo, de intersubjetividade com o outro e de transcendência com o transcendente, o constituem como um ser-em-relação na sua singularidade e na sua unidade e totalidade existencial. Nessas dimensões relacionais são, pois, constituídas e construídas as diferenças expressivas que particularizam e individualizam cada homem e cada mulher.

Na relação de objetividade com o mundo acontece uma relação ativa unilateral. Ela se faz presente na medida em que o ser humano marca sua presença no mundo, agindo ativamente; é o exercício de organizar e de compor, intencionalmente, o seu mundo e marcar sua presença como ser-no-mundo. É uma relação ativa que se estabelece com o mundo, caracterizada por uma relação de não-reciprocidade. Há apenas a presença de uma relação unilateral ativa, a presença apenas de uma intencionalidade, a do ser humano. “A relação de objetividade humana expressa-se na categoria de mundo e se caracteriza pela não-reciprocidade” (Junges, 1999, p.87).

Na relação de intersubjetividade com o outro, há o pressuposto da reciprocidade e da interatividade. Há, pois, a necessidade intrínseca da participação do outro como interlocutor. Nessa relação há a presença de duas intencionalidades e, por isso, essa relação de intersubjetividade, constitui-se numa relação de reciprocidade interativa. Instaura-se uma relação dialógica e interativa com um outro eu. “Na relação de intersubjetividade, estamos diante de duas infinitudes intencionais que se relacionam. É a reciprocidade de relação” (Junges, 1999, p.89). Essa relação provoca e exige a presença, a participação e o comparecimento do outro como interlocutor e faz, do ser humano, um ser-com-os-outros, um ser-para-os-outros, um ser que se constitui sujeito na relação com um outro sujeito.

A relação de intersubjetividade é fundamental para a compreensão do valor do outro, para o reconhecimento e a acolhida da dignidade do outro. A intersubjetividade traz como exigência o dever do respeito ao outro e o dever de uma preocupação e uma ocupação ativa com o bem do outro, para que o mesmo seja também um sujeito capaz de encontros e relações dialógicas e interativas com outros seres humanos sujeitos situados. O meu ser sujeito acontece mediatizado pelo reconhecimento e acolhimento do outro. “O sujeito é reconhecido como sujeito, quando reconhece o outro como sujeito” (Junges, 1999, p.91).

A valorização e a promoção da vida, e da dignidade e do valor do outro, são condições para a vida e a dignidade do eu e do outro nessa relação. O outro é indispensável para que o eu seja; da mesma forma que o meu eu é igualmente indispensável para que o eu do outro possa reconhecer-me como um outro no meu eu. O eu e o outro interativamente se exigem. É necessária a presença do outro para que o eu continue existindo. Suas relações são intrinsecamente mediatizadas pelas presenças interativas de um ao outro.

Nas relações de transcendência, por sua vez, há a superação da relação de objetividade e de intersubjetividade, pois a relação de transcendência acontece entre sujeitos espirituais. “O encontro humano é sempre encontro entre sujeitos e como tal, encontro espiritual, pois a relação entre sujeitos não acontece no nível empírico, mas transcendental, já que é um encontro entre sujeitos espirituais portadores de sentido que se reconhecem” (Junges, 1999, p.92).

Aparece, nessa dimensão relacional, o caráter de transcendência do homem e da mulher. Na relação entre seres humanos sujeitos espirituais há o reconhecimento e a valoração do outro como sujeito. No ato do reconhecer-se é garantida a diferença, percebe-se o outro diferente, é garantida a atitude de acolhimento mútuo, é reconhecida a individualidade e a singularidade de cada sujeito da relação, é respeitada a originalidade e a identidade do outro, é garantida a compreensão e o acolhimento mútuo da dignidade e do valor do outro como sujeitos. No ato de reconhecerem-se e acolherem-se, os sujeitos não se anulam, mas se exigem um ao outro, como condição de existência de ambos, porque sujeitos espirituais.

Nessa relação de transcendência, há também a presença do absoluto que supera e transcende a contingência do mundo e a limitação do outro. “A relação de transcendência designa uma forma de relação entre o sujeito situado no mundo e na história e uma realidade que está além da realidade que lhe é imediatamente acessível” (Junges, 1999, p.94).

Essa relação de transcendência lhe é imediatamente acessível porque o ser humano compreendido como sujeito espiritual, superando o mundo e a história e indo além do seu ser-no-mundo e do seu ser-com-o-outro, percebe-se, situa-se e busca o sentido último da sua existência, dos seus sonhos e utopias, na transcendência, nesse seu ser para e com o absoluto.

Essa mesma relação com o absoluto tem caráter de não-reciprocidade e de reciprocidade. “A relação com o absoluto é, por um lado, não recíproca; por outro, recíproca” (Junges, 1999, p. 95). De um lado, possui caráter de relação de reciprocidade interativa porque, na imanência do absoluto ao sujeito, o ser humano participa, no mais íntimo do seu ser, da infinitude do absoluto. Por outro lado, o caráter da relação de não-reciprocidade se constitui porque o absoluto é, ao mesmo tempo, totalmente transcendente ao sujeito situado, cabendo ao absoluto a iniciativa gratuita da relação. O valioso absoluto toma a iniciativa. Dessa forma, o absoluto é, ao mesmo tempo, totalmente transcendente e totalmente imanente ao ser humano, sujeito situado no mundo e na história. Segundo a visão cristã, nessa compreensão acontece a encarnação do Absoluto que se manifestou e se revelou em Jesus de Nazaré.

Nessa relação de transcendência, cabe, ao homem e à mulher, fazer experiências distintas de percepção do Absoluto. Os mesmos homem e mulher percebem, distintamente, na transcendência, o sentido de sua existência na medida em que experimentam o Absoluto como verdade, como bem e como Existente Absoluto, na medida em que se experienciam como criadores no pai, criados e irmãos no filho e amorosos no espírito.

 Existem três experiências da transcendência nas quais o absoluto é captado como sentido: a experiência da verdade, como medida de todo o conhecimento – conhecer é buscar a verdade; a experiência do bem, como norma de toda a ação – agir é realizar o bem; e a experiência do Existente absoluto, como princípio de todo existir humano – crer é depender do Existente absoluto (Junges, 1999, p.95).
    
Essas experiências de transcendência se estabelecem, pois, no experienciar a verdade identificada no Absoluto como medida de tudo; e, diante dessa verdade, o ser humano tende naturalmente para o seu acolhimento e o seu reconhecimento; no experienciar o bem, diante do qual o agir humano e a sua postura ética tendem naturalmente, há a busca de sua identificação com o Bem Absoluto e, por fim, a experiência do Existente Absoluto, como princípio de todo o existir humano, é feita no deixar-se depender desse Existente Absoluto, assumindo-o como princípio e razão que alicerça o seu ser e o seu existir como homem e mulher.

A existência do ser humano, em sua totalidade constitutiva estrutural e relacional, tem, portanto, segundo essa concepção, três razões fundantes: perceber-se buscando em tudo a verdade no absoluto como medida de tudo; perceber-se agindo na perspectiva de em tudo realizar o bem como norma de seu comportamento; e perceber-se existindo na provisoriedade de quem, em tudo, depende do Existente absoluto.


3. Realização do homem e da mulher.

Na auto-realização o homem e a mulher se expressam plenos de sentido e de satisfação; é na auto-realização que se plenifica o sentido eleito e conferido pelo ser humano à sua existência. A realização do homem e da mulher encontra-se fundamentada, basilarmente, nas mesmas dimensões da corporeidade, do psiquismo e do espírito e nas categorias relacionais da objetividade, da intersubjetividade e da transcendência, elevadas à plenitude e à completude.
          
A garantia de sentido pleno para a existência do ser humano é compreendida na dimensão da auto-realização e é nesse campo de desafios que se busca constatar o maior ou o menor grau de concretização das ações e iniciativas de dignificação, de plenificação e de cidadanização para a existência singular de cada homem e de cada mulher. “Essa auto-realização é um movimento de auto-expressão, que é liberdade, pois é assumir-se como sujeito. Trata-se de tornar-se sujeito, levando à expressão as estruturas do corpo, psique e espírito através das relações com a realidade (mundo, os outros, o absoluto)” (Junges, 2000, p.162, in Osowski et alii).

O ser humano é autor sujeito da sua história enquanto mantém uma relação de iniciativa diante do mundo que o circunda e enquanto é sujeito co-autor da história que, junto com outros seres humanos e em comunidade, constrói a partir da relação de reciprocidade e de interatividade. Enquanto sujeito, o ser humano faz uma experiência de tornar-se sujeito sempre situada, isto é, interpenetrada de presenças a si mesmo, aos outros e ao mundo. É inspirado e animado pelo sentido que atribui às suas iniciativas e ações, por ele protagonizadas, que ele se acontece plenamente na sua relação de objetividade, de intersubjetividade e de transcendência e é também inspirado e animado na sua relação espiritual e de transcendência que o mesmo encontra sentido existencial para a sua vida valer plenamente a pena e é ainda na medida em que participa de condições para o exercício pleno da sua cidadania que o mesmo encontra a sua auto-realização.

Essa realização é construída e conquistada, segundo essa compreensão, na medida em que o ser humano conseguir realizar seus projetos e seus sonhos, na medida em que concretizar aquilo que o plenifica, aquilo que o enche de satisfação, na medida em que se sente feliz, contente com o seu estado de ser, ousando sonhar e sonhando sonhos sempre mais ousados e contudo sentindo-se bem sendo o que é, faz e vive. Johannes Hessen, ao falar do sentido da vida humana, afirma “que o fim supremo do homem é justamente este: ser homem, fazer-se homem” (Hessen, 1980, p.242), constituir-se plenamente humano. Nisso estará a realização do homem e da mulher singulares.

“A necessidade da escolha do fim e da vida que lhe corresponde, coloca o ser humano diante de vários modelos de auto-realização, oferecidos pela tradição cultural e ética” (Junges, 1999, p.98). Cabe, a cada homem e a cada mulher, na liberdade e autonomia, elegerem qual o sentido a ser dado à sua vida e existência. A auto-realização é conseqüência da dialética harmoniosa e intrínseca que acontece entre as dimensões estruturais e relacionais do ser humano e o ideal de sentido de existência eleito por ele próprio. A realização dos valores eleitos como importantes para a vida do homem e da mulher é a sua própria condição única de realização. Esse dever-ser dos valores eleitos não é senão “o apelo que os valores dirigem ao homem e que este tem de realizar, se quiser obedecer à lei da sua própria auto-realização” (Hessen, 1980, p.248).

A eleição de sentido existencial e o conseqüente sentimento de satisfação e de realização constituem-se, necessariamente, em tarefas que passam pela liberdade humana. “Existe uma evidência para o ser humano de que há uma tarefa que lhe compete enquanto tal e, o fato de ocupar-se dela, define a vida propriamente humana. Essa tarefa é a auto-realização da vida humana que a distingue da vida puramente vegetativa e sensitiva” (Junges, 1999, p.98). Passa por saber, entre as possibilidades, usar do dom do livre arbítrio para escolher corretamente. E a escolha correta é sempre aquela que escolhe a liberdade de viver, a liberdade de amar, de querer bem, é sempre aquela que elege a alternativa que opta por um sentido de vida que plenifica o ser humano, que o faz sentir-se bem. A sabedoria no exercício do livre arbítrio está em que a eleição feita deve garantir condições de realização ao ser humano, deve sempre optar por um processo de plenificação da vida.

Nessa perspectiva e dinâmica de compreensão, a eleição de um sentido de vida e de existência, realizada pelo ser humano, que não conseguir estabelecer uma relação dialética harmoniosa entre as suas propriedades estruturais, relacionais e de expressividade e a sua existência e fim último, não vai garantir-lhe a plena auto-realização. “Auto-realizar-se é tornar-se progressivamente pelas relações o que se é estruturalmente. Auto-realização é a manifestação do ser no movimento de sua constituição progressiva que é, ao mesmo tempo, o movimento da sua auto-expressão. Realização é a passagem do ser que se é como dado ao ser que se deve ser como projeto” (Junges, 1999, p.989).

O ser humano, segundo essa compreensão, deverá livremente saber escolher aquilo que o torna mais plenamente ser humano. Essa exigência acontece por uma necessidade intrínseca à própria condição humana, advinda da sua relação de transcendência. Diante da verdade e do bem absolutos, experienciados na dimensão de transcendência, o ser humano tende naturalmente para eles. O homem e a mulher não são livres para escolher entre o bom e o ruim para os seus interesses de realização.

Também, nessa perspectiva de compreensão, é difícil compreender um homem ou uma mulher, quando os mesmos, não vierem a escolher e a eleger aquilo que mais os realiza, que mais os faz felizes. A busca da felicidade e da realização constitui-se em imperativo para o ser humano. “A dignidade está, em última análise, no fato de o ser humano assumir-se como tarefa de auto-realização” (Junges, 1999, p.111). Essa realização e felicidade consistem em que o homem e a mulher se apropriem das suas dimensões estruturais e relacionais, bem como das demais formas ou estilos de sua expressividade e os conduzam ao pleno desdobramento, desenvolvimento e significação existencial. É, pois, necessário que os mesmos elejam sempre aqueles valiosos que os levam a concretizar o sentimento de estar bem consigo mesmos, isto é, aqueles que o constituem cada vez mais seres humanos, enfim, aquilo que os fazem “ser homem, fazer-se homem” ( Hessen, 1980, p.242).

Entretanto, as propriedades de expressão do ser humano, adquiridas e construídas nas relações de objetividade, de intersubjetividade e de transcendência, têm a sua permanência em maior ou menor grau, dependendo da qualidade de intensidade e de freqüência dessas suas relações, isto é, podem não estar presentes com a mesma intensidade e com a mesma freqüência em todas as pessoas, como podem também não estar todas presentes na mesma pessoa ao mesmo tempo.

As “propriedades do ser humano, como expressão, admitem uma graduação” (Junges, 1999, p.108). Pode-se ter mais ou menos consciência desse ou daquele problema, maior ou menor consciência de que isto ou aquilo pode ser bom, pode-se saber mais ou saber menos sobre determinado assunto, isto é, determinados fatos ou determinadas atitudes podem acontecer com maior ou menor freqüência e grau de intensidade.

As relações de objetividade, intersubjetividade e transcendência manifestam-se de acordo com as circunstâncias existenciais presentes a cada homem e a cada mulher singulares. De acordo com a qualidade do grau de intensidade e de freqüência dessas relações, elas estarão presentes no homem e na mulher, em maior ou menor grau, em maior ou menor intensidade e freqüência, em maior ou menor grau de realização. Alguém que, em sua convivência, se apresenta sorridente com intensa freqüência integra essa característica ao seu perfil de homem e de mulher.  

Das características intrínsecas ao ser humano, alicerçadas nas dimensões estruturais e relacionais, em nenhuma circunstância ou hipótese, pode delas prescindir o ser humano. Nenhuma das características estruturais e relacionais podem estar ausentes ao ser humano, porque constitutivas do mesmo. Por exemplo, “considerar a consciência como característica potencial do ser humano como expressão significa afirmar a sua possessão e não o seu exercício” (Junges, 1999, p.109).

O homem e a mulher podem ter mais ou menos consciência, ou consciência nenhuma a respeito de algo, mas neles continua a possibilidade de consciência. As características de expressão individuais e particulares a cada ser humano, que são constituídas nas relações de objetividade, com o mundo, de intersubjetividade, com o outro e de transcendência, com o absoluto, podem, portanto, não estar presentes, com a mesma freqüência, intensidade ou grau, em todas as pessoas ou podem não estar todas presentes na mesma pessoa no mesmo momento e lugar, mas delas fazem parte constitutiva e, portanto, delas imprescindíveis também para a sua realização.

A plenificação do ser humano, nessa visão compreensiva e integradora, acontece num crescendo aberto que integra e congrega as modalidades corpórea, psíquica e espiritual, constituindo-se em uma unidade inclusiva do todo relacional do ser humano com o outro, com o mundo e com o transcendente. Isso nos permite dizer que o ser humano é sempre e está sempre inteiro no espaço e tempo em que se encontra, seja enquanto criança, jovem e adulto, seja enquanto doente, desanimado ou feliz.

É sempre um ser humano inteiro que necessita de atenção; é sempre um ser humano inteiro que eventualmente estará entristecido com suas tristezas; é sempre um ser humano inteiro que clama por ser acolhido em suas diferenças; é sempre um ser humano inteiro, desde suas entranhas e de seu mais profundo existir, que vai vibrar e se alegrar com as suas alegrias; é sempre um ser humano inteiro que necessita e clama por salvação diante dos seus insucessos e diante das suas dificuldades; é sempre um ser humano inteiro que necessita de reconhecimento, de resgate, e/ou de valorização e de promoção de sua dignidade cidadã; é também sempre um ser humano inteiro que é encontrado nas suas relações que estabelece; e é ainda sempre um homem e uma mulher inteiros que estão presentes nos processos formativos e educativos das instituições de ensino.

Depois dessa série de dimensões ou de modalidades de compreensão do ser humano chega-se a um final feliz? Todos sabem tudo do ser humano ou deve-se continuar nessa peregrinação em busca de um ser humano ainda desconhecido? Quem é o ser humano enfim? O ser humano é uma grande síntese, é um ser, uno, total, inteiro, livre, a caminho da transcendência na identificação com o Absoluto? É a grande síntese que se auto-constrói na liberdade de eleger seus sentidos?  É necessário continuar? É necessário perseguir sempre novas respostas para o sempre renovado e sonhado desejo de ser mais?

Parece que o homem e a mulher são marcados, de um lado, pelo desejo e pela tendência em ser mais, em saber mais, em buscar mais para melhor ser e existir com dignidade cidadã e, de outro, marcados e imobilizados por circunstâncias históricas da realidade que os afeta e pelas suas limitações existenciais a uma rotina de simplesmente ser. É, pois, uma questão de saber, de poder e de querer escolher, entre o ato de simplesmente ser e o ato de ser mais, de buscar mais, de buscar o melhor em tudo o que se faz. Infelizmente “a maioria permanece no hábito melancólico de ser sem o aguilhão de ser mais” (Junges, 1999, p.100).

É prudente terminar esse estudo e proposta de reflexão e compreensão de ser humano, com essa referência, de que a maioria permanece no hábito melancólico de simplesmente ser, sem o aguilhão de ser mais? O que será dos estudantes, e da sociedade, se essa for a atitude dos pais, das escolas e de seus educadores e educadoras?  Parece ser, realmente, constitutivo do ser humano continuar a se interrogar e a buscar sempre novas e/ou renovadas respostas, deixando páginas em branco por serem escritas por homens e mulheres singulares no seu historicizar-se, que os mesmos escrevem junto com os demais sócios ou junto como sócio dos demais, sem, contudo e/ou portanto, nessas questões colocar e/ou se colocar um ponto final