Do coração de Educador ...
essas flores para cada um de vocês...
essas flores para cada um de vocês...
(foto da Praça em frente à Catedral de Osório RS - 02-08-2012)
Queridos alunos e alunas do Curso 'Qual Escola educa o povo'! Este texto está postado neste espaço para facilitar o acesso a vocês que participaram do XVI Forum Internacional de Educação, promovido pela Faculdade Cenecista de Osório RS nos dias 1, 2 e 3 de agosto de 2012.
Qual escola educa o povo
José Wilson Schlickmann[1] -
Faculdades Integradas de Taquara
wilson.schlickmann@hotmail.com
“O ser
humano é digno de respeito, porque,
não
nascendo pronto,
tem o direito de percorrer o seu itinerário
singular,
buscando na liberdade
um
sentido para a sua vida”
(JUNGES,
2000, p. 163).
Resumo
Este estudo se propõe
discutir e provocar questionamentos sobre a qualidade dos valores que
fundamentam currículos e práticas educativas, bem como sobre qual a qualidade do
espírito presente nas relações construídas no contexto de instituições de
ensino. Discute como entender a construção de um currículo presentes num espaço
educativo-pedagógico a partir dos saberes e da espiritualidade que os anima e
move. Trata de um lançar-se no trampolim da busca por renovadas leituras, compreensões
e formas de construção de saberes a respeito dessa temática, que se desdobra em
compreensões sobre currículo, práticas educativas, projeto educativo, valores e
espiritualidade, sem o convencimento da necessidade de se colocar um ponto
final nessa discussão
Palavras-chave: valores, espiritualidade, currículo, práticas educativas.
Abstract
This study aims to discuss and provoke questions about the quality of
the values that underlie curricula and educational practices, and on which the
quality of the spirit present in the relationships, built in the context of
educational institutions. Discusses how to understand the construction of an
educational curriculum in an area-based teaching of knowledge and spirituality
that animates and moves. This is a springboard to launch yourself in the quest
for renewed readings, understandings and ways of building knowledge about this
subject, which unfolds in understandings of curriculum, educational practices,
educational project, values and spirituality, without the conviction of the ne ed
to putting an end to this discussion
Keywords: values, spirituality, curriculum, educational practices.
Este texto está alicerçado
numa experiência de sociedade voltada para o consumo e a conquista de objetivos
a qualquer preço; na experiência de um educador-filósofo e numa fala voltada
para um público ainda curioso, inquieto e instigado pela busca de renovados
saberes sobre como encontrar caminhos mais comprometidos com processos
coletivos e solidários para o enfrentamento de uma sociedade ainda muito marcada
por um espírito autoritário, desumano, individualista e sectário. Nesse
contexto: qual escola educa o povo e qual a escola que já espera pronta pelo povo
que por ela procura?
A civilização ocidental,
dentro da qual homens e mulheres constroem seus sonhos, é profundamente marcada
por três pilares: o monoteísmo hebraico, a filosofia grega e o direito romano.
Esses pilares moldam a cultura ocidental e continuam exercendo influência na qualidade
do espírito que motiva homens e mulheres a agirem, nos saberes e valores, nas formas
de organização social e nas expressões do poder.
O quadro cultural passa a
impressão de que, no dentro das escolas, esperando pelos alunos a serem
educados, ou inducados, e ensinados, já estão presentes as igrejas, com seus aguilhões
de moralismos, dogmas e deuses, está uma filosofia e cultura com seus saberes,
preconceitos e valores já cristalizados e os diferentes imperadores, com seus
respectivos exércitos, impondo o que é certo e o que errado, o que vale e o que
não vale, o que pode e o que não pode.
O povo, ao adentrar nas
escolas, parece que já se depara com especialistas, mestres e doutores, representantes
desses pilares, bem instalados, quando não intalados, em seus gabinetes e
pontos estratégicos, prontos para comunicar o que é moral ou imoral, o que vale
e o que não vale, o que pega bem e o que não pega bem na vida das pessoas. Dá a
impressão de que todos esses embaixadores já estão bem treinados e prontos para
repassar tudo, assim que o povo entrar no raio de ação do espaço escola.
Para quem se propõe
filosofar sobre qual escola educa o povo, é imprescindível ter presente essa
escola que já espera pronta pelos estudantes. E quem se sente desafiado por
essa realidade de escola, constata como necessária uma práxis comprometida com processos
dos quais o sujeito possa participar, interagir, interferir e eleger. Entende
como inalienável reconhecer que cada ser humano tem um itinerário singular a
percorrer e que esse mesmo ser humano se caracteriza por ser um eterno aprendiz,
construtor de sua própria história, inserido numa comunidade de iguais, por
integrarem uma mesma espécie ou por serem todos filhos de Deus, e por isso irmãos.
Entende, também, ser necessária
uma proposta com germens provocadores da construção de processos coletivos e
participativos, nos quais, os hoje sem vez e sem voz, venham a ter voz e vez, e
nos quais, os mesmos se constituam sujeitos das suas próprias construções. Necessário,
ainda, reconhecer que, para intervir nessa realidade dada, segundo James, é
importante ter a consciência de que “quem
sabe que tem uma finalidade na vida, uma missão a cumprir, possui em suas mãos,
um valor inigualável” (1999, p.10). Por último, importa identificar por
quais motivos as pessoas estão no seu aqui e agora, sonhando com o que sonham,
fazendo o que fazem, amando a quem amam, comprometendo-se com o que se
comprometem. Ou seja, implica identificar qual a qualidade de espírito que
anima o ser humano e quais estratégias utilizar para construir respostas pertinentes
às suas inquietações e sonhos existenciais.
Segundo compreensões antropológicas,
construídas por Vaz (1995), o ser humano é constituído pelas dimensões corpo,
psiquê e espírito. Construída a compreensão de que é na dimensão corpo que se manifesta
a primeira percepção do ser humano, tanto para si mesmo, quanto para os outros;
que é na corporeidade que acontece a percepção das suas dimensões psíquica e
espiritual, bem como as dimensões de relação com os objetos, com o outro e com
o transcendente. Nessa compreensão o ser humano precisa do seu corpo para manifestar-se,
auto-revelar-se e relacionar-se, visto ser o corpo a sua condição de
presentificar-se a si mesmo e aos outros, de estar consigo e de estar com os
outros.
Significa compreender,
segundo Vaz (1995), que é na dimensão espiritual que as questões sobre o
sentido da vida, sobre o significado do trabalho e da própria existência
deverão encontrar respostas. E no âmbito dessa dimensão, aflora a questão de
qual qualidade de vida sim e qual não, qual vida vale a pena viver e qual vida
não vale a pena, qual educação sim e qual educação não. Isso porque ninguém pode
viver sem descobrir um sentido para a vida. Segundo Junges (1999), a sua existência,
os outros e o mundo têm um significado que se revela no espírito. É nesse contexto
compreensivo que a vida, segundo o espírito, “é a vida propriamente humana” (VAZ, 1995, p. 10).
O ser humano é um ser-em-situação
na sua totalidade estrutural, relacional e de expressividade e também o é sujeito
ativo e interativo circunstanciado num tempo e espaço. Relaciona-se como
totalidade somático-psíquico-espiritual e essa condição de totalidade
existencial lhe constitui uma identidade ontológica como sujeito inteiro situado.
É nessa condição que o ser humano é “o
artífice ou o artista de si mesmo e sua primeira obra de arte que, para a
imensa maioria é a única, é a sua própria existência como homem” (VAZ,
1995, p. 217). O desafio do ser humano é, portanto, o de construir-se,
expressar-se e constituir-se como existência, tornando-se sujeito de sua
própria construção.
Ainda no contexto das
compreensões antropológicas, o ser humano é um ser de eleições e essa sua
condição lhe capacita selecionar, priorizar, escolher, incluir e, por isso
mesmo, lhe permite também excluir, deixar de lado ou marginalizar. No dia-a-dia
da vida do ser humano, das suas organizações, bem como das práticas escolares presentes
nas instituições de ensino, através do processo eletivo, sempre se está
valorizando mais isto, menos aquilo, priorizando este ou relegando aquele,
importando-se com esta dimensão da vida, desinteressando-se daquela.
Isso porque, citando
Hessen, “é da essência do ser humano
conhecer e querer, tanto como valorar” (1980, p. 40). O ato de priorizar ou
de relegar, de valorizar ou de desconsiderar, de importar-se ou de não
importar-se, de eleger incluindo ou de eleger excluindo, sempre estão
alicerçados em algo que o ser humano entende e sente merecer o seu querer ou o
seu não querer. Segundo esse autor, “valor
é sempre valor para alguém” (1980, p. 47).
Vive-se um antropológico cercado por um mundo
plural e singular, globalizado e aldeia, multicultural e monocultural,
pluriforme e uniforme, manual e tecnológico, do recado por cima do muro e da
televisão e do rádio, das cartas e mensagens via correios e do e-mail e redes
virtuais. Diferentes propostas de sentido existencial são veiculadas nos espaços
de convivência. Esses diferentes caminhos, por sua vez, exigem de cada ser humano,
eleições entre uns e outros valores, uma e outra proposta de significação
existencial. Vive-se, pois, uma realidade marcada por um antropológico e um
axiológico que se fazem também presentes no mundo da educação e dentro dele, marcando
currículos, processos pedagógicos e práticas educativas.
Como referido
acima, valores são sempre valores para quem dá valor. Os valores, que o ser
humano e suas instituições elegem, provocam a origem da espiritualidade que irá
inspirar e fundamentar suas ações, atitudes, comportamentos, projetos,
currículos, práticas educativas e sentido existencial. É sempre um espírito,
qualificado por valores, que se manifesta presente no dia-a-dia das práticas
educativas de uma escola, na vida do educador, dos estudantes, desta ou daquela
instituição.
A vivência da
espiritualidade eleita pela escola cria unidade intrínseca entre o dizer e o
ser, entre a palavra e o gesto e a mesma se manifesta nos espaços da
convivência escolar. Por isso, segundo Taborda, “não é indiferente à espiritualidade, o como percebemos e vivemos a
realidade histórica e qual o projeto que temos para ela” (1982, p. 202). Cria-se,
pois, uma relação intrínseca entre os valores agregados à dimensão espiritual
do ser humano e o dia-a-dia por ele vivenciado. Essa qualidade de relação também
vale para a vida que acontece nos espaços escolares, mediadas no currículo.
Segundo Zabalza, “nenhum estilo de
educação tem sentido se não está comprometido com valores” (2000, p.21).
Identidade do Currículo
Falar em currículo lembra
corrida de cavalos numa canha reta, em torno da qual, muitas coisas acontecem,
desde os preparativos para a corrida, a própria corrida dos cavalos com seus
jóqueis e o pós, comemorando a vitória ou justificando a derrota; é interessante
notar que nas escolas se fala em corredor e, ao mesmo tempo, se proíbe que as
crianças corram; afinal de contas, é corredor ou, na escola, é caminhador? Um
curriculum vitae retrata por onde uma vida andou, ou correu; para outros,
currículo lembra conteúdos, relação de disciplinas; entretanto é importante
alargar essa compreensão, incluindo também os corredores de escolas onde
meninos e meninas correm, alguns desengonçados, alegres e esperançosos, outros
sofridos, solitários e violentos, lutando por inclusão, vez e voz, outros ainda
sofrendo as conseqüências do bulling; incluindo ainda um espaço onde alunos
podem, devem e/ou querem aprender a viver e a sobreviver, a firmar esperanças
de realização, a lutar por seus sonhos e, muitas vezes, a abrir mão de muitos
deles.
O currículo representa o
jeito didático-pedagógico de tangenciar formas e indicadores de como viver
esperança, viver sonhos, sonhar utopias, concretizar relações. Segundo Freire,
um currículo pode representar uma proposta de exclusão de um poder que tenta
imprimir atitudes imobilizantes, insistindo “em
convencer-nos de que nada podemos contra a realidade social que, de histórica e
cultural, passa a ser ou a virar quase natural” (1997, p. 22), como se nada
fosse possível fazer frente ao vivido, experimentado
e ao que aí posto, como também pode representar proposta de alteração qualitativa
no quadro relacional dos sujeitos em interação.
É pertinente chamar
atenção para o fato de que o ser humano e suas instituições se existencializam
em e com as suas circunstâncias, se fazem e se concretizam a partir e com as
suas inquietações, problemas, angústias, suas eleições de inclusão e de
exclusão, seus desejos em ser mais e melhor. Esse mesmo ser humano e respectivas
instituições se fazem a partir de suas eleições, se constituem a partir e com
as suas relações, a partir e com as suas migrações, idas e vindas, projetos,
valores, sonhos e esperanças.
Isso porque sempre existe
um processo educativo presente onde os seres humanos, em sua inteireza,
convivem, constroem, se constroem e sonham, contextualizados. A qualidade do
agir do ser humano, do educador, da escola e de seus estudantes, é sempre
identificador da presença de uma proposta educativa, de um currículo e de um espírito
específico que os fundamenta. Pode-se afirmar, com Magalhães, que “a organização do currículo ultrapassa os
muros da instituição e considera o contexto em que a escola se insere, buscando
dar uma resposta eficaz às necessidades educativas que daí emergem” (1999,
p. 145).
O currículo é construído a
partir dos conhecimentos, saberes e valores entendidos como necessários ao ser
humano para tornar-se sujeito no entremeio relacional das suas contradições e
tensões. Segundo Sacristán (2000, p.
21), “um currículo é algo que se constrói
e seus conteúdos e suas formas últimas não podem ser indiferentes aos contextos
nos quais se configura”. No contexto educativo, o currículo é o dentro da
escola, é o fora da escola, é a comunidade que a circunda.
Os atores da construção de
um currículo se enfrentam, cada um com seus respectivos argumentos, fundados em
seus interesses e num jogo democrático elegem. O dentro e o fora se interpelam,
discutem e elegem o que vai fazer parte ou não do currículo. Para Silva, “o currículo é sempre o resultado de uma
seleção: de um universo mais amplo de conhecimentos e saberes seleciona-se
aquela parte que vai constituir precisamente o currículo” (1999, p. 15).
Pensar currículo é pensá-lo,
não apenas circunscrito à realidade do dentro dos muros escolares, isso porque
os processos educativos acontecem onde acontecem interações, inter-relações,
trocas de saberes, sempre num ‘aqui e agora’ singular e concreto. Aponta-se
para a necessidade de que sejam respeitadas e valorizadas as circunstâncias nas
quais e com as quais os atores se sentem comprometidos. Segundo Freire, exige
discutir as condições das aprendizagens, em busca daquelas pelas quais eles vão
se “transformando em reais sujeitos da
construção e da reconstrução do saber ensinado, ao lado do educador, igualmente
sujeito do processo” (1997, p. 29).
No currículo estão
presentes interesses e escolhas sociais, conscientes ou inconscientes, que
concordam ou não com os valores e as crenças dos grupos dominantes na
sociedade. Sacristán, citando Bernstein (2000, p. 19), diz que “as formas através das quais a sociedade
seleciona, classifica, distribui, transmite e avalia o conhecimento educativo
considerado público refletem a distribuição do poder e dos princípios de
controle social”. Um currículo expressa, portanto, a cultura, a vontade e
os interesses de grupos sociais dominantes, das políticas governamentais e/ou
representa a vontade da comunidade escolar.
Portanto, segundo
Sacristán, “o interesse pelos problemas
relacionados com o currículo não é senão uma conseqüência da consciência de que
é por meio dele que se realizam basicamente as funções da escola como
instituição” (2000, p. 17). A configuração da nova sociedade passa, necessariamente,
pela construção de um novo currículo, alicerçado em outros valores, porque é o
currículo que projeta práticas, crenças e valores que interagem nas ações
pedagógicas.
Uma proposta
humano-cristã, preocupada com a formação de homens e mulheres críticos,
solidários, ocupados com a justiça, a fraternidade, o respeito à autonomia dos
sujeitos, tem nesses valores os seus referenciais da qualidade do respectivo
currículo e os mesmos se convertem em exigência para uns e outros. É preciso reconhecer
que toda opção por esses ou aqueles valores tem suas conseqüências para o
dia-a-dia do currículo das escolas. Por exemplo, para Marques, “um currículo antimarginalização é aquele em
que todos os dias do ano letivo, em todas as tarefas acadêmicas e em todos os
recursos didáticos estão presentes as culturas silenciadas” (1999, p. 48).
Esse entendimento
fundamenta a afirmação de que, em educação, é o currículo eleito que realmente
faz a diferença. Isso porque é ele que aponta para a qualidade de educação
desejada. Pode-se afirmar, com Osowski, que é o currículo escolar que faz a
diferença “na vida de cada estudante, no
sentido de que ele se torne mais participante e reflexivo, solidário e
autônomo, questionador e acolhedor, crítico e sonhador” (1999, p. 68), ou
não. Adiantando um pouco nessa reflexão, o currículo, segundo Sacristán (2000,
p. 15), “é uma práxis antes que um objeto
estático emanado de um modelo coerente de pensar a educação ou as aprendizagens
necessárias”. É um processo que acontece no diálogo da teoria com a prática
e dessa com a teoria. A realidade desse dinamismo presente no currículo impede a
pretensão ou o comodismo de construir um currículo e eternizá-lo.
A qualidade de um currículo
e respectivo projeto educativo é percebida, segundo Sacristán, “a partir das atividades que preenchem o
tempo no qual transcorre a vida escolar, ou que se projetam nesse tempo, e em
como se relacionam umas tarefas com outras” (2000, p. 209). Torna-se necessário,
portanto, assumir essa relação intrínseca entre os valores, o currículo e tarefas
escolares. Por essa razão, quando houver o desejo de alterar uma proposta
educativa é necessário agir no currículo. Como diz Sacristán, “mudar as tarefas escolares para melhorar a
qualidade do ensino exige mudanças importantes na estruturação do espaço
escolar, do horário, das conexões com a realidade exterior, etc“ (2000, p.
231).
Dada a importância da
presença dos valores no currículo, a discussão que se justifica é sobre a
escolha de quais valores sim e quais valores não. É indispensável que, no
exercício da autonomia, sejam os alunos, educadores, família e comunidade os
participantes do processo de eleição de quais valores cultivar em seu contexto.
Entretanto, essa eleição, por sua vez, segundo Zabalza, pode causar
desencontros “porque os valores que
possuímos nem sempre são coincidentes com os de outras pessoas e, em muitos
casos, podem dar lugar a divisões e controvérsias na comunidade educativa”
(2000, p. 22).
Podem acontecer
desencontros porque, de acordo com os interesses em jogo, serão mais ouvidas
umas vozes e situações e deixadas de lado e excluídas outras tantas vozes e
situações. Por sua vez, essa ação de dar voz e silenciar vozes se manifesta na
qualidade das tarefas escolares. Isso porque, segundo Sacristán, “a tarefa é o elemento intermediário entre
as possibilidades teóricas que o currículo prescreve e os seus efeitos reais
(2000, p. 221)”. É o currículo que estabelece as normas da qualidade relacional
e das ações escolares, transformando-se em parâmetros de comportamento. Isto
porque, segundo Sacristán, “quando os
alunos entendem o que se pede deles em diferentes tipos de atividades,
auto-regulam seu comportamento de acordo com a norma requerida para cada
tarefa” (2000, p. 227).
O currículo pauta o quadro
de valores que servirão de fundamento para a conduta pessoal e interpessoal
desejável e para os sentidos de vida a serem cultivados. Dessa forma os
currículos das escolas constituem-se em propositores e mediadores de concepção
antropológica e axiológica, dizendo quais valores e saberes cultivar na família
e na comunidade escolar e quais não. No dia-a-dia da comunidade escolar,
segundo Inoue, “quando o professor grita:
“eu não admito que gritem na sala” ele está passando valores. Quando não
respeita o aluno, mas exige ser respeitado, está também ensinando um valor, no
caso, o respeito unilateral” (1999, p. 24).
Esse poder de conformar e
moldar atitudes e comportamentos aponta para a realidade de que, segundo Inoue,
“os valores permeiam todo o tecido
social” (1999, p. 26), que, em tudo o que se é e se faz, estão imbricados
valores, que tudo, intrinsecamente, é inspirado, animado, dinamizado e
impregnado por valores; também a vida das pessoas, dos educadores e das suas
organizações escolares. De acordo com Sacristán, “não podemos mover-nos sem eles, e, de uma maneira ou de outra,
impregnam o que fazemos” (2000, p. 21). Reforçando essa compreensão, Inoue
diz que “valor é alguma coisa que pauta o
comportamento humano” (1999, p. 27).
Essa força e energia,
advinda dos valores eleitos, corporificados num currículo ou projeto de vida, é
que dão força para corporificar um projeto e, de acordo com Zabalza, essa
questão dos valores sempre “foi e será um
tema-chave em qualquer processo de ação e de reflexão sobre as pessoas e suas
ações” (2000, p. 21). Por isso Inoue, diz que existe, intrinsecamente, “a necessidade de se trabalhar de forma
explícita e intencional com os valores que se elegem” (1999, p. 25). É
importante que, tanto as escolas, quanto seus educadores, saibam como ensinar
para seus estudantes os valores nos quais acreditam, tornando-se essa
responsabilidade intrínseca à tarefa e missão de quem atua nas escolas.
Dos saberes construídos
acerca dos valores, resulta a compreensão de que os valores eleitos são realmente
os qualificadores da existência humana e organização escolar; que os valores, ao
se tornarem princípios de ação, provocam efeitos na qualidade de vida das
pessoas; que a existência humana, em toda a sua extensão, será qualificada por esses
valores; e que se farão presentes na escola, através da sua proposta e projeto
educativo, concebido e praticado pelas pessoas que interagem num espaço
educativo-pedagógico.
Também desses saberes,
resulta a compreensão de que é pelo testemunho de vida que as aprendizagens
percorrerão diferentes caminhos de geração em geração; e ainda, que é pelo
testemunho institucional da escola, dos educadores e comunidade, que os valores
eleitos irão qualificar as organizações escolares, seus currículos e suas práticas
educativas, vindo a ser realidade na vida dos estudantes e da comunidade em torno.
É, ainda, importante ter presente que, a maior ou menor intensidade de vivência
dos valores eleitos qualificará, em maior ou menor grau, a vida das pessoas, das
escolas e das suas diferentes relações. Trazer o testemunho de Zabalza, neste
momento, é importante; diz ele que “eram
trabalhos muito bons, mas o que mais chamava a atenção era a intensidade com
que professores e alunos de cada grupo viviam e descreviam o trabalho
realizado. Eles haviam sido contagiados pelo amor à natureza” ( 2000, p.
24) por força do testemunho presente na sua escola.
É, portanto, necessário compreender
que um currículo proposto se constitui mediador dos valores eleitos pela
escola, também compreender que o currículo, na prática, é mediado por seus protagonistas.
Segundo Sacristán, “a relação pedagógica
professor-aluno está muito condicionada pelo currículo, que se converte em
exigência para uns e outros” (2000, p. 31). Ou como diz Sacristán, em outro lugar, “estão implicados com o currículo todos os temas que têm alguma
importância para compreender o funcionamento da realidade e da prática escolar
no nível de aula, de escola e de sistema educativo” (2000, p. 28).
Configurando a escola que educa o povo
A primeira condição é que a mesma seja resultado de uma construção coletiva. Isso porque a maior consistência das iniciativas dessa escola acontece quando toda a comunidade é incluída, quando a escola inteira interage pedagogicamente, quando acontece participação. Essa condição implica, para todos, assumir e comprometer-se com o projeto educativo construído e, ao mesmo tempo, assumi-lo em transformação contínua, porque histórico e inserido num contexto dinâmico. Pode-se dizer, citando Inoue, que um projeto educativo “é algo vivo, que se cria na interação com as pessoas e com a cultura, e porque todos os que participam do cotidiano escolar são parte daquele projeto educativo” (1999, p. 55).
Também citando Inoue, não se
pode imaginar um trabalho escolar que “desconsidere
o diretor ou o coordenador, o professor, os alunos, os pais, os funcionários; não
adianta haver um trabalho integrado entre o professor e o coordenador e os
funcionários da escola caminharem em outras direções” (1999, p. 56). É
necessário entender que todos precisam se expor e se apresentar nessa relação,
com os seus sonhos, com a sua história de vida e de lugar próprias, únicas e
insubstituíveis e juntos construírem e se construírem mais seres humanos.
Como diz Freire, “não há docência sem discência, as duas se
explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem
à condição de objeto, um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem
aprende ensina ao aprender” (1997, p. 25). Quem participa desse processo o
faz com a sua historicidade, com a visão e experiência construídas nas suas relações,
se faz presente com os seus valores e seus pontos de vista. Trata-se da questão
de educar-se para construir coletivamente, aprendendo a interferir de forma ativa
e criativa. A participação crítica na construção do projeto educativo cria
consciência de pertença e de corresponsabilidade e gera ou resgata a autoconfiança.
A importância dessa
construção coletiva está no fato de a mesma ser resultante de um processo
dialógico, no qual e pelo qual os atores sujeitos trocam conhecimentos e os
constroem renovados, no qual e pelo qual trocam experiências e as enriquecem,
as conquistam e juntos participam dos resultados. Esse agir dialógico é resultado
de uma prática de grupos, histórica e dinâmica. E, para Inoue, “é importante que as crianças percebam que
se trata de uma construção coletiva, portanto relacionada à vida em grupo e ao
conhecimento construído em grupo. O aluno precisa perceber que faz parte de um
grupo” (1999, p. 81).
É também importante
destacar, nas palavras de Inoue, que “alguns
educadores têm uma profunda dificuldade de perceber o universo da educação sob
o ponto de vista que não seja exclusivamente pedagógico e se recusam a admitir
que a escola é uma organização inserida numa comunidade” (1999, p. 58). É fundamental
aprender a perceber que a escola é uma organização viva, inserida dentro de uma
comunidade viva, criativa e em transformação contínua, que vive num coletivo relacional
dinâmico. É para esse contexto e a partir desse contexto que a escola precisa pensar
e ser propositiva. E, segundo Inoue, na construção coletiva “o modelo que se estabelece é o da
distribuição participativa de responsabilidades” (1999, p. 58).
Esse modelo, de acordo com
Inoue, admite responsabilidades diferenciadas, mas, nas relações que acontecem no
mundo escolar, entre professor e estudante, “seguramente
a grande responsabilidade é dele, educador. É ele que vai acionar as
metodologias, estratégias, procedimentos, levantar as questões – ele vai se
perceber como agente de transformação” (1999, p. 58), sem dispensar a
contribuição e a participação de seus estudantes.
Num processo de construção
coletiva do projeto educativo, a escola como um todo terá argumentos para
propor, defender e operacionalizar a sua proposta. Esse modo de proceder dá
mais segurança a seus participantes porque uma coisa é o professor ter de
justificar para o pai porque trabalhou tal coisa de uma forma e, outra coisa, é
ele poder conversar com os pais para situá-los em relação àquilo em que a
escola acredita.
Para a comunidade escola e
seus participantes, a definição de uma proposta ou plano tem a função de
agregar, de harmonizar e de organizar seqüencialmente o projeto educativo. Nas
palavras de Sacristán, “o plano fornece
estabilidade e coerência ao curso fluido dos acontecimentos, que, à simples
vista, podem parecer espontâneos, imprevisíveis, anárquicos, etc. (2000, p.
248). Pode significar, por exemplo, fortalecer o educador democrático que irá,
na sua prática docente, reforçar a capacidade crítica do educando, sua
curiosidade, sua insubmissão. Pode, também, de acordo com Marques, significar
um aprender a “fazer das práticas da sala
de aula um instrumento de luta pela transformação da sociedade, respeitando e
convivendo com a diversidade cultural” (1999, p. 49).
Reforçando, uma vez mais,
é importante destacar que a efetivação do projeto educativo, definido pela
comunidade, se dá pelo testemunho da escola, de seus educadores e da
comunidade. Freire, referindo-se à necessidade do testemunho, diz que “ensinar exige a corporeificação das
palavras pelo exemplo. Às palavras a que falta a corporeidade do exemplo pouco
ou quase nada valem” (1997, p. 38). Aponta, também, para a necessidade de
que “a prática educativa tem de ser, em
si, um testemunho rigoroso de decência e de pureza” (1997, p. 36). Diz,
ainda, que “às vezes, mal se imagina o
que pode passar a representar na vida de um aluno um simples gesto do
professor” (1997, p. 47).
Ainda falando do
testemunho, a escola com seus educadores, conscientes de seu inacabamento e do
inacabamento de seus alunos, precisam reconhecer o muito que têm por aprender. Segundo
D’Ambrósio, sugere-se que testemunhem esse seu inacabamento, propondo “a humildade da busca permanente” (2000,
p. 19). É da função do mestre, pelo seu exemplo e testemunho, acolher a vida,
valorizar a vida, promover a vida e o sentido da mesma, apontando para os
diferentes sentidos e razões de existência.
O que se quer realmente
dizer é que não se pode desvincular um pedagógico, com seus currículos,
práticas educativas, o todo organizacional das instituições de ensino, o
espírito que os alicerça, os inspira, anima e os move, do testemunhar com a
vida essas realidades, convicções e valores. O que se quer dizer é que,
intrinsecamente, se encontram, articulados e embricados, o espírito e o
pedagógico, o todo pedagógico e o testemunho, o testemunho e a qualidade do espírito
que os inspira, anima e move. Nessa compreensão, só será significativo um
projeto educativo se o mesmo for testemunhado no dia-a-dia dos professores, educadoras
e demais integrantes da comunidade escolar, provocando comprometimento com o
projeto coletivamente construído.
Apontando
conclusões
Ao falar, nesse estudo de
qual escola educa o povo, cabe destacar que, nessa luta por ser sujeito do currículo
e no currículo, a questão do respeito às individualidades e às circunstâncias
de cada uma das pessoas é inalienável. Freire diz que “qualquer discriminação é imoral e lutar contra ela é um dever por mais
que reconheça a força dos condicionamentos a enfrentar. A boniteza do ser gente
se acha, entre outras coisas, nessa possibilidade e nesse dever de brigar” (1997,
p. 67) por um projeto no qual se acredita e com o qual houve comprometimentos
de uma escola e comunidade.
A boniteza de ser gente
está, pois, no fato de as pessoas entenderem que é dever seu brigar por aquilo
que acreditam e por aquilo que entendem necessário transformar. Nesse contexto,
se pode entender porque Osowski diz que “o
currículo escolar precisa fazer diferença na vida de cada estudante” (1999,
p. 68) e também entender porque Freire diz que “o gesto do professor valeu mais do que a própria nota dez que atribuiu
à minha redação” (1997, p. 48).
Para finalizar, julgo importante
fazer este destaque sobre a cultura da malhação. Cabe recordar que é sempre uma
qualidade de espírito que anima o ser humano. Uns são movidos pelo espírito de
vingança, de anarquia, outros pelo espírito de respeito e justiça, outros
ainda, por um espírito egoísta. Na cultura da malhação é comum as pessoas terem
seus horários para malhar o corpo em academias, parques, ciclovias, com o
objetivo de construir um corpo esbelto, vigoroso e ‘sarado’. Também comum a utilização
de dietas para uma vida biológica mais saudável. Em escolas são propostos
exercícios para desenvolver o raciocínio, a mente, a inteligência e com isso,
ampliar as capacidades de compreensão e de percepção da realidade entorno.
Muitos já ouviram falar de
exercícios espirituais ou em exercitar o espírito. No currículo da escola está
previsto como trabalhar a dimensão espiritual, de forma clara e didática, para
que os alunos venham a se tornar adultos também na sua dimensão do espírito?
Qual o espaço reservado e organizado para que o aluno possa ‘malhar’ a sua
dimensão espiritual? Como ter um espírito de solidariedade, de respeito ao
outro, de compreensão, perdão, justiça, se os mesmos não forem exercitados? Só
será um adulto solidário, compreensivo e justo, se desde pequeno se exercitar
em solidariedade, compreensão e justiça. Por que não exercitar semanalmente um valor com toda a
comunidade escolar?
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